resenhas

Há alguns anos colaborei escrevendo resenhas para diversos jornais. Seguem algumas publicadas em O Estado de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil (rip) e Tribuna da Imprensa (idem)

Rua da padaria – Bruna Beber 

Bruna Beber nos convida para um passeio no seu novo livro de poemas, Rua da padaria (Record, 2013). Desde a primeira seleta, publicada em 2006 (A fila sem fim dos demônios descontentes), a jovem poeta tem chamado a atenção na cena literária — a princípio carioca, mas hoje já conta com poemas traduzidos em diversos países.

Mas voltemos à rua da padaria. Hoje, aos 29 anos, a moça nos transporta para a Baixada Fluminense da — já longínqua — década de 1990. Ao se passear por essa rua, percebemos que não se trata de um saudosismo escapista. Nada de “oh! que saudades que eu tenho” de um Casimiro de Abreu já distante de representar as percepções de tempo contemporâneas. O olhar sobre a infância e adolescência não é mais permeado com a saudade da inocência perdida numa época idealizada. O que Bruna faz é uma previsão para ontem: adivinha, vaticina o seu tempo com diferentes matizes. Em alguns poemas há pitadas de desencanto e ceticismo: “chumbo que respiro / minha saudade / te apodrece”. Outro exemplo está no magnífico “romance em doze linhas”, que traça toda uma trajetória da montanha russa do amor nos nossos dias.

Mas na maior parte do livro existe uma candura pulsante, especialmente quando se trata de referências familiares e cenas comezinhas ambientadas na Baixada: “mamãe posso comer / essa pipoca // não pode minha filha / é macumba / macumba não pode comer. // e o guaraná pode / ah mãe deixa.” São esses instantes capturados que explodem da memória do eu-lírico para a memória do leitor, num tipo de empatia que não se vê toda hora na poesia brasileira dos últimos anos.

O livro não só é um passaporte para a rua da padaria, mas é também um passaporte bonito. Não se pode deixar de mencionar o belíssimo projeto gráfico, de Patrícia Chmielewski: um embrulho com papel vermelho, típico de padarias e outros comércios populares, selado com um pedaço de fita durex, que traduz a simplicidade e a beleza dos poemas.

Se no segundo livro, Balés, já foi possível notar um maior apuro técnico mesclado a uma seleção temática mais criteriosa em relação à obra de estreia, agora já se percebe um avanço maior na escrita de Bruna. Boa parte dos poemas tem versos curtos, bem cadenciados, com uma melodia que casa bem com a proposta geral do livro. A forte carga imagética sugere ainda que esses poemas, apesar de tão intimistas, pedem para ser lidos também em voz alta, alcançando uma dimensão que só o tempero da oralidade confere à poesia. O poema “de castigo na merenda” é um belo exemplo: “felicidade é o que tem dentro / das bolinhas de papel // e se arremesso / lá vai ela // pela porta na careca / do inspetor // brinca de pique aposta / corrida numa perna só // quica sobe vira pipa / nos braços livres do céu // cai de algodão / das nuvens // e de sono nas penas / dos travesseiros // a felicidade é muito mais / desconcertante que a dor.” Essa é a rua da padaria.

A feliz participação de Bruna Beber na Festa Literária de Paraty, numa das mesas mais interessantes e suaves, teve um quê de representativo.  Rua da padaria é publicado por uma grande editora que, assim como quase todas as grandes casas, raramente investe em novos poetas. É comum o argumento, um tanto batido, de que “poesia não vende”. Pois bem. Rua da Padaria foi um dos títulos mais vendidos da FLIP, chegando a esgotar rapidamente após a apresentação da autora. Com esse livro aparentemente singelo e profundo, Bruna também furou, drummondianamente, certo asfalto editorial. A rua da padaria é de terra fértil.

E esse caminho está num bom momento de ser trilhado. O livro de Bruna surge num momento em que a poesia ganha novo destaque nas prateleiras, puxado pela comercialmente bem-sucedida obra completa de Paulo Leminski — com quem aliás, a poeta vem sendo comparada. A escrita concisa, quase epigramática, o texto acessível ao leitor não iniciado, a pegada publicitária, a tendência ao despojamento e o senso lúdico, e tantas outras características, de fato, podem unir os dois. Mas a poesia de Bruna não parece ter essa influência direta, trilhando pela rua da padaria com luz própria.

Essa rua da padaria tem o cheiro poético de quem olha para trás com os pés no agora. Tem o cheiro da memória boa, do pão saindo do forno. Antes dos 30 anos, Bruna Beber nos faz lembrar que, na poesia — e, por isso mesmo, na vida — hoje está sempre amanhecendo.

A tragédia brasileira: romance-teatro – Sérgio Sant’Anna

Com muita razão, a literatura de Sérgio Sant’Anna, além de seu refinamento em termos técnicos e de exploração temática, é apontada como uma das mais instigantes que vêm sendo produzidas. Os quatro prêmios Jabutis concedidos ao autor carioca apenas confirmam a qualidade de seus livros, que conseguem mergulhar de forma eficaz em questões da atualidade sem se renderem a metáforas simples ou ao receituário da prosa convencional e mercadologicamente palpável. Pelo contrário, o autor não faz concessões que venham a desagradar os seus poucos e fiéis leitores – cada obra sua vende em torno de 5 mil exemplares.

Em boa hora, a Companhia das Letras reedita “A tragédia brasileira”, livro de 1987, considerado uma das mais relevantes obras de Sérgio. Embora a sugestão do título possa remeter à situação política contemporânea por que passa o país (e não é de todo arbitrário que se faça essa leitura), trata-se de um casamento de texto teatral e romance, cujo enredo de desenrola a partir do atropelamento de Jacira, uma menina de 12 anos, em 1962. Embora as menções diretas ao contexto sócio-histórico dessa época sejam sutis, o período em que se passa a história traduz o tom de um conjunto de forças em conflito fervilhando no caldeirão que viria a explodir dois anos depois.

O caldeirão do livro é mexido por um Autor-Diretor, que orquestra uma espécie de jogo de camadas envolvendo a montagem da peça e sua própria vida, acrescentando ainda poesia, ensaio e roteiro de teatro. Esse bailado entre as atmosferas, conduzida habilmente por Sérgio Sant’Anna, confere ao leitor a possibilidade de também imergir nos ambientes descritos.

Sobressai na obra um teor humorístico, em que a matéria literária, ao passar pelos filtros do autor, adquire um aspecto de carnavalização, no qual a sucessão de simulacros inverte a todo tempo os papéis duplos de pureza/pecado, inocência/culpa, sagrado/profano, como na fala de um personagem denominado Bispo, em que explica a natureza dos milagres atribuídos à menina morta: “Os cegos andam, os surdos vêem e os coxos escutam. Eis o verdadeiro milagre do Senhor.”

Nas mãos do Autor-Diretor, a própria criação artística se torna objeto sobre o qual surgem ponderações: “Só me resta criar coisas bonitas, pois a beleza – a beleza maldita – me redime. Sou um artista. Minhas obras são doentes e sofridas, mas não posso parar de fazê-las, porque para mim seria a morte.” O processo da transfiguração entre fato e literatura – outra constante na obra do autor – está sempre em questão. “A tragédia brasileira” é, portanto, um jogo de espelhos em que a criação vai se desdobrando a partir e em torno de si mesma.

Esse diálogo com outras manifestações estéticas, como artes plásticas, teatro e cinema, acaba também por abrir possibilidades de a obra literária de Sérgio Sant’Anna ser diretamente convertida para esses meios. No caso do cinema, apesar de a adaptação de “Senhorita Simpson” ter gerado o parco “Bossa nova”, de Bruno Barreto, estréia nos próximos meses a esperada versão de “Um crime delicado”, pelas mãos de Beto Brant. Pelo seu conteúdo complexo e rico e atual, uma nova montagem de “A tragédia brasileira” seria bem-vinda para o leitor-espectador da boa obra artística.

 

As sementes de Flowerville – Sérgio Rodrigues

 

No romance “A caverna”, José Saramago desenhou um futuro no qual as pessoas viveriam em grandes shoppings, chamados Centros, onde moradia e consumo enfim atingiriam o mesmo nível, sem que se saiba onde termina um e começa outro. Uma realidade que já está chegando e contra e qual é impossível se desvencilhar sem cair na total marginalidade.

Em “As sementes de Flowerville”, primeiro romance do jornalista e escritor Sérgio Rodrigues, o mundo está nas mãos de megaempresários que comandam seu império da janela de um prédio, em perspectiva panóptica. Um deles, Victorino Peçanha, é o dono do condomínio Flowerville, cuja contraparte é o seu empreendimento fracassado chamado Nova Esplanada. Peçanha, que em cada fala insere um termo em inglês, enriqueceu após ter herdado um posto de gasolina e se locupletado com privilégios de militares que em dado momento teriam exercido o poder. Deles, restou o general Boaventura, escudeiro subserviente do empresário.

Passado o período militar, o ambiente do livro sugere que o mundo foi regido pelas leis de consumo voltado para a classe média. Em torno desse nivelamento é que Peçanha tem seu projeto: salvar a democracia. Para isso, contrata o matemático Neumani (que reside em Nova Esplanada) para encontrar um meio de conferir ao voto de cada indivíduo o peso que seja de acordo com a sua posição social: “Tratar todo mundo como igual é uma mistura de demagogia e preguiça, dois defeitos graves dessa democraciazinha esclerosada que a humanidade tem praticado.” Com esse tipo de manobras é que a rede de influências do magnata vai se aumentando, o que revela o sistema moral predominante no universo do romance: destituído quase totalmente de escrúpulos.

Algumas pistas indicam que a história se passa num futuro tenebroso, como a idéia de urbes decadentes e dominadas por megacorporações, além de características do aparato tecnológico (celulares que comprovadamente causam câncer, e por isso são proibidos), imagens já tão disseminadas pela ficção científica. Outros elementos sugerem que tudo se passa num período antes do nosso (um personagem era da turma de Direito em 1949; a data da solução do Teorema de Fermat). Essa indefinição pode dar a entender que tudo não passa de uma crítica direta aos nossos dias, ou apenas confundir o leitor que queira se situar num tempo cronológico mais específico.

Esse e outros pontos podem ser visto como negativos. O livro não se define nem como uma obra de ficção científica de crítica social, como um mero entretenimento, tampouco se assume como um romance policial leve e sarcástico. A linguagem coloquial não esconde que há variações de tom narrativo, que em certos momentos dança em maneirismos e noutros resvala numa reflexão mais formal e séria. Esses aspectos, no entanto, não impedem que “As sementes de Flowerville” seja uma leitura divertida.

Flowerville poderia ser facilmente plantada na Barra da Tijuca, com seus condomínios auto-suficientes onde se fala cada vez mais um inglês forçado, assim como Victorino Peçanha e seus of courses. As sementes mencionadas no título, além do que é revelado somente no final do livro, podem ser também o resultado estéril do sexo oral que as prostitutas adolescentes aplicam no empresário sobre a sua poltrona mole da grife Sérgio Rodrigues, como é mostrado ironicamente no trecho inicial do romance.

Guesas de Eros – Paulo Bauler

Uma vez que Baudelaire tenha afirmado que o poeta é o herói da modernidade por sobreviver num mundo em que o lirismo se tornou desnecessário, a discussão sobre a (in)utilidade da poesia – e do fazer poético – se tornou uma constante nos estudos literários. Quem é esse que ousa provocar o inusitado nessa realidade de palavras e pessoas cimentadas? Se tal arte tem se revelado dispensável para a existência contemporânea, por que se insiste nela? É possível ser poeta sem se submeter aos aplausos pequeno-burgueses nos eventos em bares e centros culturais, muitas vezes realizados pelo modismo de um suposto renascimento da poesia?

Muitas dessas respostas podem ser encontradas em “Guesas de Eros” (Maricá/RJ: Blocos, 2000. 680 págs.), do carioca Paulo Bauler. Grandioso em qualidade e extensão, o volume é dividido em cinco partes, que isoladamente já dariam excelentes livros: “O caminho de São Eros”, “Guesas de Eros”, Bocagianas brasileiras”, “Beautiful Maíra” e “Delírio Antropofágico”. Este último, como afirmou Gilberto Mendonça Teles na orelha, pode ser visto como “um dos mais ecléticos manifestos literários para o novo milênio”, uma vez que se trata não de poemas, e sim de fragmentos em prosa, à melhor maneira de Oswald de Andrade – como está subentendido no título –,  impregnados de humor instigante e fino.

Uma leitura ingênua e desatenta pode encontrar nos poemas apenas traços descritivos de pornografia. Na verdade, o que é oferecido em “Guesas de Eros” é a relação do amor carnal humano com a elevação divina: “Feliz daquele que cumpre o que Deus deu (…)/ Feliz daquele que se aceita o próprio deus// Saber do amor as réguas e os compassos/ E caminhar de mão dadas/ assim na terra como nos céus.” Porque se é pelo amor que o homem se dignifica, que seja pela sua manifestação real, e não por divagações idealizadas que se encerram nas palavras. As quatro primeiras partes do livro, cuja temática forma uma unidade seqüencial do indescritível átimo amoroso,  sugerem uma possibilidade de se atingir uma sublimação (humana e, ipso facto, divina) através da consciência plena do outro. Desponta, assim, a religiosidade no sentido original do termo, que significava a “re-união” de elementos separados, mas que outrora formavam um ser uno.

Apesar das quase setecentas páginas, que inicialmente podem assustar o leitor, “Guesas de Eros” tem uma linguagem absolutamente fácil de ser entendida, e por isso a leitura é bastante agradável. Isso não significa que seja banal, mas inteligível, inclusive porque trata de um tema universalmente reconhecível. Há, porém, uma série de referências históricas, religiosas e literárias que soam como um deleite para o leitor mais erudito. Embora estejam em forma livre, os poemas possuem uma musicalidade pulsante, num ritmo que por si só já é um convite a permanecer com o livro aberto.

Paulo Bauler não se enquadra na categoria dos poetas de câmeras e cambalhotas que proliferam nos saraus da Zona Sul do Rio. Sabe que a poesia nasce do silêncio e no silêncio deve ser absorvida. “Guesas de Eros” é o seu presente para os ainda (e sempre) leitores de poesia, num texto que transcende com magnificência do material ao etéreo, fazendo da religião das palavras a brasa alentadora dos estímulos.

 

Cartas – Caio Fernando Abreu

A recente valorização das correspondências emitidas e recebidas por escritores vem ao encontro de dois pontos identificáveis na literatura e cultura contemporâneas. O primeiro, fomentado pelos meios acadêmicos como nova e profícua linha de pesquisa, consiste nas possibilidades de investigação da obra de determinado autor a partir de seus rastros – e, muitas vezes, suas raspas e restos -, os quais adquirem vida paralela à obra principal ou, poderíamos dizer, canônica. Incluam-se nesse conjunto não só as cartas, mas também textos incompletos, entrevistas, crônicas deixadas em jornais e revistas e até obras renegadas pelo próprio escritor. O segundo ponto diz respeito ao público leitor/consumidor e está ligado ao crescente interesse pela figura do artista, cuja essência poderia ser desvendada a partir dos diálogos pessoais com os seus contemporâneos. Sem serem necessariamente tendenciosas, ambas as vertentes podem contribuir para o enriquecimento da leitura literária.

O volume das cartas de Caio Fernando Abreu, lançado em 2002, concentra-se mais no primeiro aspecto. Organizado pelo professor Ítalo Moriconi, o livro fornece um retrato da vida social e literária das três últimas décadas do século XX. No estudo introdutório apresentado por Ítalo, a obra do autor de “Morangos mofados” é situada contemplando todas as esferas estéticas e culturais desse período, perpassando pela cultura marginal dos anos 70 até a exaltação do misticismo dos 90. As cartas foram divididas em duas partes. A primeira, intitulada “Todas as horas do fim”, cobre o período de 1980 até a morte do escritor, em 1996; já “Começo: o escritor” abarca o intervalo de 1965 a 1979. Essa inversão cronológica traz um benefício à leitura, pois o livro começa e termina justamente quando o escritor atingia a sua maturidade artística.

Em algumas cartas é possível, ao leitor, captar inusitados sentidos literários coerentes com o universo de Caio Fernando. Como em uma de 1980, em que num P.S. solicita ao pai que lhe envie determinada marca de erva-mate, visto que a sua havia acabado: “O senhor podia me mandar um ou dois pacotes de Madrugada Amarga?”.

Muitas das cartas narram a árdua luta de Caio para conciliar as atividades jornalísticas com a produção literária, como numa ao escritor gaúcho Charles Kiefer: “É que nossa ‘profissão’ (aspas intencionais & irônicas) não tem muitas vantagens objetivas. Até hoje, cinco livros publicados, 34 anos, me debato todos os dias para sobreviver e para não desistir. Nélida Piñon costuma dizer que, de alguma forma, todos os dias alguém bate à nossa porta e nos convida a desistir. Não desistimos de teima quem sabe até meio burra.” A condição homossexual, na época ainda não tão bem aceita na sociedade, convive com a ameaça da AIDS (que acabou sendo a causa da morte do escritor). Em missiva ao teatrólogo Luiz Arthur Nunes, em 1984, o autor já demonstra preocupação: “Como anda a história da AIDS por aí? Aqui acalmou, mas correm uns horrores vezenquando, há duas semanas foi um amigo-de-um-amigo, quer dizer, foi-se.” Ao se inserir Caio no mesmo grupo de Renato Russo e Cazuza, a doença pode ser vista como um mal-do-século, equivalente ao que foi a tuberculose no século XIX, que atingia determinada categoria de artistas entregues à vida desregrada e, quando não, libertina.

Já se fala no caráter datado da obra de Caio Fernando Abreu, cuja obra, tal como nas correspondências, poderia ser tão marcadamente um retrato de uma época que teria dificuldade de transcender os muros cronológicos em função de uma universalidade. Isso só o tempo dirá. Por outro lado, essas Cartas mapeiam um período histórico de maneira às vezes bem-humorada, outras trágica, mas sempre permeadas por um imenso afeto.

 

Coleção Canto do Bem-Te-Vi

Ante-sala – Astrid Cabral

A estalagem do som – Elisabeth Veiga

Tempo inteiro – Paula Padilha

Tectônicas – Solange Casotti

Ao léu – André Luiz Pinto

A pequena editora Bem-te-vi acaba de lançar uma segunda série de livros de poemas. Diferentemente da leva anterior, voltada para autores até então inéditos, desta vez foram selecionados poetas já publicados, ainda que pertençam a diferentes faixas etárias e cada um deles possua uma voz peculiar.

Seguindo a ordem cronológica decrescente, figuram na coleção Canto do Bem-Te-Vi “Ante-sala”, de Astrid Cabral, autora de 12 títulos; “A estalagem do som”, quarto livro de Elisabeth Veiga; já Paula Padilha, com “Tempo inteiro”, e Solange Casotti, com “Tectônicas”, lançam seus segundos livros; “Ao léu” é quinta coletânea do caçula da fornada, André Luiz Pinto, nascido em 1975. Com tiragem de mil exemplares cada, essa leva passou pela peneira de uma comissão formada por profissionais reconhecidos na área, como o poeta Armando Freitas Filho e o crítico Silviano Santiago.

Em “A estalagem do som”, a carioca Elisabeth Veiga consegue uma simplicidade cada vez mais rara na poesia contemporânea, assumindo a postura de se embrenhar sem culpa ou angústia no mundo das palavras: “eu sou  um parafuso a menos/ da máquina do mundo”; sua voz atinge um lirismo suave e burlesco, afirmando “meio meu jeito esquerdo/ neste mundo tão destro”. A essa fluência marcadamente drummondiana se soma uma voz feminina (não feminista, entenda-se bem) cujo resultado apenas acrescenta mais densidade à escrita. Destacam-se também as brincadeiras que a autora faz com as palavras, em neologismos que sutilmente brotam nos poemas, como “vida-game” ou “alternurando”.

Apesar de possuírem um mesmo projeto gráfico – simples e bonito -, “Tectônicas”, de Solange Casotti, é o único que possui ilustrações. Os desenhos do artista plástico Guilherme Secchin foram feitos especialmente para o livro, que é dividido em três partes: “Do tempo ou Dentadas de Saturno”, voltada para a reflexão acerca da condição humana e contendo os poemas mais realizados do livro: “Fotografaram a mim,/ a cor que vi/ eternizava/ o cheiro do tempo/ que o instantâneo/ havia revelado.”; a segunda, “Do Ritmo ou Tectônicas”, trata da solidão urbana e a observação da natureza; na última, os poemas buscam um tom mais humorístico. Vários possuem citações entre aspas com as referências no fim da obra, recurso desnecessário nesse tipo de texto.

Paula Padilha consegue um equilíbrio de técnica quase perfeito em “Tempo inteiro”. Com versos enxutos e bem elaborados, a carioca consegue eficazmente transcender a duração cronológica, capturando aquele momento que Gaston Bachelard, no seu “A intuição do instante”, afirmou ser a essência da realização poética. A realidade burilada se desdobra ao “instante/ que por um fio/ impõe-se ao movimento/ perpassa o espaço/ inteiro do tempo”. O livro é dividido em três partes, “fio”, “dentro” e “vidro”, que se complementam num todo, com remissões ao tempo e ao ato da escrita.

Numa outra vertente, André Luiz Pinto opta por poemas mais longos em “Ao léu”. Essa narratividade se aplica bem ao conteúdo dos textos, em cuja temática prevalece um tom de insatisfação social, porém sem cair na armadilha do panfletário. O recurso do enjambement, em que uma idéia termina e outra começa no mesmo verso, gerando um tipo de transbordamento, confere ao texto uma outra velocidade de pulsação: “o casal de namorados/ persiste no amor/ doídos de prazer/ aliás, diria, dane-se;/ meu silêncio é meu guia,/ não escrevo, nem/ respiro/ paralítico/ no tempo, casal/ de vagabundos.” Em meio ao caos inevitável do mundo, o livro sugere uma posição resignada do poeta diante da vida, na qual “a alma finalmente entende,/  em solitude, que a melhor/ ternura é morrer.”

A perda, aliás, é o tema de “Ante-sala”, da amazonense Astrid Cabral, viúva do poeta Afonso Félix de Souza, com quem foi casada por 45 anos, e que agora se encontra “em plena sala”, como consta na dedicatória. A metafísica em torno da idéia de fim gerou alguns dos poemas mais pungentes sobre o assunto, como o belo “Passagem”: “Atravessar o mar/ a vela, a nado.// Atravessar a terra/ a pé, de carro.// Atravessar a cor/ às cegas, em claro.// Atravessar a dor/ a ópio, a espasmos.// Atravessar o entrave/ a treva, a carne.// Atravessar o ser./ Dar na outra margem.” Com extrema habilidade, Astrid consegue transcender a metáfora e dar nome ao inexplicável, fazendo dos poemas um tipo de matéria, sobretudo, viva.

Publicar cinco livros de uma só tacada pode chamar a atenção pela demonstração de fôlego editorial, mas causa pelo menos um prejuízo às obras: na divulgação, são apresentados no seu conjunto, de modo que a unidade estética de cada um fica prejudicada pela inevitável comparação, algumas vezes até injusta. Embora num mesmo projeto gráfico, cada título constitui um universo poético único, que inevitavelmente acaba fazendo sombra ao irmão recém-lançado.

Caberá ao público, portanto, a seleção do que lhe é mais prazeroso e apetecível dentre a diversidade dos cinco livros. Mesmo porque é ele, afinal, que conjuga as notas e entoa o canto na ocasião íntima da leitura.

 

Uma guinada do real ao fictício – Cecília Vasconcellos

O crítico norte-americano Harold Bloom, no seu livro “O cânone ocidental”, afirma que a literatura não funciona como um elemento de elevação das pessoas. Que nas páginas dos clássicos há violência, ganância, transgressões, excessos, enfim, todo tipo de estímulos contrários às convenções estabelecidas para que haja uma harmonia social, e que por isso devem ser observados predominantemente pela via estética.

Tais considerações podem não ser suficientes para abarcar o papel que a literatura vem exercendo nos últimos tempos. A ficção tem se alimentado não só do fato histórico, mas também dos pequenos acontecimentos que permeiam o cotidiano, que por sua vez contêm uma rede de possibilidades de leituras. É o que a carioca Cecilia Vasconcellos faz em “Guinada” (Rio de Janeiro: Record, 2001. 256 págs.), seu primeiro romance. A autora, talvez por possuir experiência em literatura infanto-juvenil, consegue habilmente trabalhar com o poder que os livros exercem nos leitores, principalmente os ainda em formação.

A história se ambienta numa fazenda, onde a protagonista Sylvia foi terminar um livro e acaba se envolvendo com varias pessoas, especialmente o dono da propriedade, com quem tem um romance, e Valnice, uma menina tímida que guarda um segredo. A chegada da escritora, uma figura estranha ao meio rural, caracterizada principalmente pela curiosidade, faz com que a vida de todos os personagens dê reviravoltas, ou guinadas, como sugere o titulo.

Na capa é possível visualizar uma presença de olhar cético e protetor, num contexto que sugere ao mesmo tempo tragédia, fantasmagoria e redenção. A escolha pela narrativa em primeira pessoa dá a protagonista uma posição de catalisador da guinada por que passa cada personagem, realizando em parte o desejo que todos têm de tornar o mundo mais digno. Assim, a narradora se converte em heroína, mas sempre consciente de que tem como armas as palavras, como no auxílio que ela presta à menina Valnice, cuja descoberta da literatura acaba assumindo uma dimensão de conquista da própria realidade.

Sendo a protagonista também uma escritora, não deixa de refletir sobre as questões que envolvem o seu ofício, como o isolamento necessário: “O silêncio e a imobilidade, tão aprazíveis na solidão, tornam-se insuportáveis na presença de estranhos, e estranhos há por toda parte, até dentro de nós.” Daí que em várias ocasiões a narradora tenha se desdobrado em personagens que se misturam com as pessoas reais. Tem-se, portanto, um romance em três camadas: a nossa, a de Sylvia, e a que ela cria. Há explicitamente uma comunhão entre Cecilia e a narradora. Ambas escreveram seus livros numa fazenda, dando a impressão de que “Guinada” foi o livro escrito por Sylvia, estabelecendo um jogo entre o real e o ficticio. Deve-se, poreém, ter o cuidado de não se ler o livro como uma obra autobiográfica, pois embora alguns fatos sempre sejam tranferidos da experiência pessoal para a criação literária, o livro emerge como autêntica ficção. Aliás, é nesse entrelugar, nesse embate, que reside a sua grandeza.

Este livro de Cecilia Vasconcellos e também um romance que denuncia vários problemas da classe agrícola: invasões dos sem-terra, politicalhas, carência de recursos, desmatamento e violência. É sobretudo uma visão de quem não se conforma, e que no fundo busca fazer a sua parte para que o país tambem dê uma guinada.

 

Contos sobre tela – Vários autores

No romance de José Saramago “Manual de pintura e caligrafia”, o narrador-personagem transita do mundo da pintura para o literário, relatando algumas fronteiras  marcadas pelas diferentes necessidades de representação. Ao refletir sobre essa transcendência, afirma: “Brinco com a as palavras como se usasse as cores e as misturasse ainda na paleta. Mas em verdade direi que nenhum desenho ou pintura teria dito, por obras de minhas mãos, o que até este preciso instante fui capaz de escrever, e atrever”. A comparação indica que a pintura pode, ainda que com suas limitações diante da escrita, sugerir uma história – ou mais de uma -, como o instantâneo de uma linha contínua que o observador pode, a partir de seu conjunto internalizado de narrativas, puxar e reconstruir.

E quando quem observa é um escritor, essas possibilidades tendem a ser exploradas das formas mais inusitadas. É o caso da coletânea “Contos sobre tela”, que acaba de sair pelas Edições Pinakotheke. O escritor carioca Marcelo Moutinho convidou outros quinze autores de diversas partes do país com o desafio de escreverem um conto baseado numa pintura ou escultura de um artista plástico brasileiro. Como em toda antologia desse tipo, são fornecidas amostras da literatura que vem sendo produzida pela geração atual, ainda que dentro dos limites de uma temática pré-estabelecida.

Como já afirma José Castello no prefácio, os contos são acima de tudo um exercício dos jovens autores. Ao associar esses textos às imagens do início do livro, o leitor recria uma parte desse mesmo exercício. Os diferentes modos de escrita – pois estamos falando de uma geração cuja peculiaridade é o desprendimento de um todo, seja cronológico, seja de estilo, seja de temática – permitem uma leitura também diversificada no que se refere ao estabelecimento de relações entre o conto e o respectivo quadro.

Desse modo, alguns contos têm um fio sutil e alegórico que os liga à obra de arte correspondente, como no poético “A sala dos pássaros”, de João Paulo Cuenca, numa narrativa docemente trágica acerca da morte, a partir da obra do pintor cearense Leonilson. Em outros casos, como no ótimo “Enquadramento”, de Adriana Lunardi, a tela de Pedro Weigärtner funciona apenas como o retrato de uma situação narrada. Já em “A carioca”, de Antônio Mariano, a história é justamente sobre a suposta modelo que posou para o quadro homônimo de Pedro Américo, em 1882. Esse tipo de relação, na qual a descrição das imagens se integra à narrativa, ocorre em boa parte dos contos. Desse grupo, merece destaque “A muda carne das coisas”, de Luciano Trigo, que criou a partir de “Azulejaria em carne viva”, da carioca Adriana Varejão, uma narrativa na qual a carne, numa representação dos conflitos humanos, salta por detrás dos das calmarias ilusórias: “Mas de dentro vem o cheiro das tripas do azulejo: a carne, o sangue que palpita por trás das cerâmicas impolutas, que se racham e deixam ver a vida, o esforço, a dor”. O texto de Marcelo Moutinho, baseado em “Tudo te é falso e inútil”, de Iberê Camargo, apresenta uma história na qual todos os objetos desaparecem diante dos olhos do protagonista: “Porque o precário é escuro, e B. cismou que precisava do escuro para, por contraste, ter luz própria.”  Ao lançar mão desse recurso, a narrativa se converte num tipo inverso de simulação, da qual a perspectiva da realidade é revelada – no sentido de ser descoberta e velada novamente.

O conto de Flavio Izhaki, “Apenas eco”, escrito a partir do quadro “Moças”, de Di Cavalcanti, é o que encontra a mais equilibrada realização da proposta do livro, ao estabelecer uma dança imagético-textual ao longo da narrativa sobre as reminiscências sexuais da vida de uma mulher: “Crescer foi borrar-me aos poucos, desatar o laço que as mãos fazem com os joelhos, desapegar de mim para outro, para outros. Romper os limites negros da fronteira com o mundo, inundar de vermelho o branco enevoado da vida adulta”. O início da história, em que o desassombro da narradora é transmitido a partir das suas sensações cromáticas, pode representar, por metonímia, a idéia de toda a coletânea.

É muito comum encontrar personagens de ficção recriados em quadros, esculturas ou em instalações. Mas o oposto também é possível. “Contos sobre tela” é um exemplo de que a arte da escrita pode beber de outras fontes, sobre as quais repousa ou se esconde uma história a ser narrada. Trata-se, portanto, de uma possibilidade de transfiguração de manifestações artísticas em que a que a literatura, com sua concisão e abertura simultâneas, estabelece com o leitor uma espécie de jogo de imagens e palavras.

 

Rilk shake – Angélica Freitas

20 poemas para o seu walkman – Marília Garcia

A cadela sem Logos – Ricardo Domeneck

 

Em meio à variedade de caminhos da poesia nesses chamados anos 00, um dos pontos a serem salientados é a ausência de uma trajetória do texto escrito para além do círculo de indivíduos que o produzem. Há quem defenda como algo natural o fato de aqueles que escrevem e consomem poesia serem a mesma pessoa. Porém, ao leitor desarmado, o afastamento dos textos em verso está se tornando também algo natural.

Em geral, para o leitor encarar odisséia intelectual de signos, composta por um sem-numero de referências lítero-músico-estético-filosóficas da poesia contemporânea, terá feito um esforço tamanho que, mesmo depreendendo algum sentido, poderá dominar o poema, mas estará longe de algum estado poético que não o de ordem conceitual. Nesse sentido, poetas têm escrito apenas para poetas, de modo que oferecer algo que possa ser compreendido por não-iniciados soa como herético ou facilitador da leitura de poesia, caminho que deveria ser cruzado a duras penas.

Grosso modo, à propensão do texto em prosa com feições de roteiro de Tarantino equiparam-se os versos como batidas de música techno. Não por acaso, em recente evento sobre manifestações artísticas contemporâneas realizado no Rio de Janeiro, os poemas eram projetados nas paredes e trabalhados por VJs. Essa imersão do texto poético ao ambiente plástico-sonoro-cinético lhe conferiria um caráter “moderno”, ou multimídia – para usar o termo que, ironicamente, já está em desuso. Deve-se atentar para todas as vertentes de expressão poética, de maneira que o intercâmbio das diferentes linguagens não relegue a potência da palavra a um segundo plano, ou um mero subterfúgio para algo que seja visualmente movimentado ou mais impactante.

Em meio a esse quadro, novos autores se expressam. As editoras 7Letras e Cosac Naify estão lançando mais três livros da “série bolso”, voltada principalmente para a divulgação de poetas mais jovens. “Rilk shake”, de Angélica Freitas; “20 poemas para o seu walkman”, de Marília Garcia e “a cadela sem Logos”, de Ricardo Domeneck, completam a coleção, que conta com um projeto gráfico simpático e agradável. Poemas dos três livros foram publicados no penúltimo número da Inimigo Rumor, hoje considerada uma das mais importantes revistas de poesia em língua portuguesa, também editada pela 7Letras e Cosac.

Em “a cadela sem Logos”, a primeira parte possui o aspecto de um longo poema,  constituído por textos de aspiração filosófica dispostos em versos curtos: “o real é a/ decoração do momento/ & a cidade não é o/ mapa mas o mapa/ está correto/ pois entre os sujeitos/ que o/ parto consagra estão/ apenas os sujeitos com/ corpo/ de centro da fertilidade/ da mãe do acaso”. A noção de verso como unidade rítmica do poema, se considerarmos a definição de Manuel Bandeira, aqui se apresenta de forma irregular, sugerindo antes uma asfixia taquicárdica do que a absorção convencional do verso. Desse modo, ler seqüencialmente essa parte do livro pode não ser uma experiência das mais agradáveis, cabendo, porém, a leitura randômica e eventual.

A segunda parte do livro é formada por 11 poemas cujos títulos são denominados “faixas”, inclusive com a sugestão do tempo que se levaria para lê-los. Já a terceira, “Composição como contexto”, é uma espécie de ensaio sobre as opções e perspectivas artísticas do autor, permeadas com frases como “cada momento sabe exatamente do que precisa para ser precisamente o que já é”. Poderia ser suprimida do livro, visto que Domeneck envereda por esse tipo de texto com mais eficácia num interessante ensaio sobre o panorama poético atual, publicado na Inimigo Rumor supracitada.

Com “20 poemas para o seu walkman”, Marilia Garcia apresenta poemas contendo um tipo esquivo de narratividade, sugerindo recortes de imagens recorrentes: “o quarto é um aquário/ com setas submersas de/ sol e seu corpo filtrado/ pela luz do insulfilm/ tem o contorno/ de um magnetismo/ inverso (…)”. A autora opta por uma dicção em que freqüentemente outras vozes surgem e dialogam com o eu-lírico principal, às vezes apenas para marcar, em itálico, o que seria uma fala de personagem ou pensamento suspenso no poema: “uma cidade ausente ocupada/ por enguias atlânticas pode ser uma forma/ de ficar entre mas não posso fazer/ isso se convence. (traziam armas/ brancas para o duelo)”. A parte “Encontro às cegas” é composta por pequenas prosas descritivas de cenas curtas, sem pontuação, como se fossem poemas encaixotados e comprimidos. Em alguns textos do livro, as referências caem de maneira excessivamente arbitrária, sem deixar muita margem para que o leitor construa algum sentido.

Nesse aspecto, “Rilke shake” é, dos três, o livro mais realizado, uma vez que assume o jogo intertextual com os recursos da paródia, e o leva até o fim de maneira humorística e despretensiosa. A autora mostra que se apropriou das referências, fez o seu mix e as bebeu, trocando qualquer angústia de influência por uma experiência lúdica de malabares: “salta um rilke shake/ com amor & ovomaltine/ quando passo a noite insone/ e não há nada que ilumine/ eu peço um rilke shake/ e como um toasted blake/ sunny side para cima”. Ao afirmar que não consegue ler “Os Cantos”, de Ezra Pound, ou mesmo no divertido poema em que põe à venda a família, Angélica transcende um certo peso hermético presente na poesia contemporânea. Arrisca, inclusive, lançar mão de rimas, recurso simples e praticamente abandonado, talvez como marca de um tempo que se julgue ultrapassado. Em “Rilke Shake” não se vê a construção de um discurso hermético e com ares de sofisticação temático-formal, que muitas vezes se caracteriza pelo resultado ininteligível aos não-iniciados, ou apenas enfadonho aos iniciados.

Essas três vozes, com suas semelhanças e diferenças, compõem o retrato aparentemente paradoxal da poesia contemporânea, em que a pluralidade de caminhos, a  segmentação de grupos e a auto-referência se apresentam para um número ainda restrito de leitores.

 

Dois que não o amor – Diana de Hollanda

Nestes últimos anos da primeira década do novo milênio, a literatura já parece entender e dar corpo a algumas das marcas dos dias atuais, como a impossibilidade de diálogo causada pelo vazio agônico entre os indivíduos. A despeito do rótulo generalizante e esquivo de se apontar a diversidade como principal marca da produção contemporânea, alguns escritores tentam compreender e dar sentido a essa temática. Esse retrato é engendrado pelo conjunto de artistas que tentam costurar os silêncios – ironicamente, os que vêm sendo chamados de “Geração 00”.

Entenda-se bem: não se trata de uma geração vazia, mas de uma geração que trabalha os vazios, tenta lhes dar forma e, no espaço da literatura, dar carne ao verbo rarefeito e diluído. Um desses exemplos está no livro de poemas “Dois que não o amor”, da jovem Diana de Hollanda. A autora, carioca de 22 anos, publicou um texto na edição de 2005 do concurso Contos do Rio, promovido pelo O GLOBO, além de ter participado na coletânea “Contos sobre tela”, editada pela Pinakotheke em 2005.

Com projeto gráfico simples e belo, próprio das últimas publicações da 7 Letras, “Dois que não o amor” é dividido em duas partes. Na primeira, “dois que não”, os poemas tratam das necessidades e dificuldades entre o ser e o mundo, embrenhando-se na conscientização do humano perante os descaminhos da sociedade. Já na segunda parte, “o amor”, as questões envolvem as relações lírico-amorosas, com acentuado teor erótico.

Com uma dicção voraz e sarcástica, a primeira metade parece carregar a porção teatral da autora, com versos que sugerem uma ação declamatória para apreciação pública. Esse aspecto, no entanto, não limita os poemas à vertente mais performática ou simplesmente da poesia falada, uma vez que a voz carrega “uma consciência insone, bêbada/ como um mar de ressaca gargalhando”, denotando uma perspectiva de distanciamento crítico em relação à realidade. Um afastamento do que seria convencional permite à poeta delinear a angústia que os versos podem comportar: “a palavra é da ânsia./ do carente que se proclama suicida”. As dificuldades de enquadramento numa questionável coletividade conduzem a fala a uma perspectiva desdenhosa, quando afirma: “talvez eu viva por preguiça, amigos./ talvez eu tenha amigos por preguiça”. Nota-se, ainda, um certo tom adolescente de revolta com as regras do mundo, naquela natural atitude de se auto-afirmar negando tudo e todos. Considerando a idade da autora, é uma lacuna aceitável e que tende a se dissipar nas produções futuras.

É na segunda parte, porém, que os versos de Diana encontram uma voz mais firme, talvez pelo caráter próprio da subjetividade poética, em que se permite um mergulho mais denso e sensorial. O aparentemente paradoxal movimento de aproximação e distanciamento do outro gera uma alteridade marcada pela vertigem e autodesdobramentos, nos quais a poeta se revela “quando souber de mim mesma novamente souber-me a mesma eu somente”. Alguns poemas (nenhum deles possui título) são verdadeiras realizações de fusão do sujeito com seu objeto, que Pessoa tão bem assinalou em “Eros e Psiquê”, ou Camões no famoso decassílabo “transforma-se o amador na cousa amada”. Dentre esse grupo, vale a citação integral de pelo menos um: “quando você afunda tão mais fundo/ que coisa qualquer você profundo/ cai em mim e desmaia inunda/ tendo-me crua voz sequer eu/ fundo profundo afundo sobre você.”

“Dois que não o amor” é uma tentativa de catar lirismo num mundo pragmático, inclusive pela demonstração de que o olhar mesmo se tornou desconfiado, com um pé atrás, sem saber ao certo onde situar seu foco. Nesse ambiente de indecisão, Diana arremata dizendo que “a voz é um fio”: no âmbito da poesia, aquilo que constitui um tipo de malha íntima que tenta costurar suavemente a humanidade e os seus vazios.

 

Cenas de Mortes Vulgares – Érico Braga Barbosa Lima

A idéia de caos, tão difundida e até venerada na contemporaneidade, pode se manifestar de forma grandiosa nas expressões artísticas de um modo geral. A literatura, na concepção de instrumento reordenador do mundo, traz para si a função de retratar – não refletir, pois que não é representação, mas simulação – as pulsões sócio-históricas que se apresentem nessa faceta desordenada.

O espaço poético, sendo encarnação máxima da condensação estética da linguagem, traduz a vivência do homem nesse início de milênio caracterizando-se fundamentalmente pela noção clara de lacunas dispersas a serem preenchidas – e a conseqüente necessidade de se criarem novas lacunas. É o que se percebe na leitura de “Cenas de Mortes Vulgares”, do carioca Érico Braga Barbosa Lima. O primeiro livro desse professor que desistiu da Engenharia e optou pela Literatura traz à superfície da página um conjunto de poemas carregados de vigor.

Érico é um dos fundadores do grupo “Poesia Simplesmente”, que há cerca de oito anos vem produzindo e apresentando espetáculos e festivais de poesia em diversas cidades fluminenses. Essa militância poética, que promove a verbalização do texto para públicos diversificados, parece ter exercido influência nos versos de Érico, uma vez que se percebe nos poemas uma forte vertente declamatória. Como já disse Heloisa Buarque de Hollanda, trata-se de uma geração que vem buscando ampliar o consumo de poesia por meio de apresentações em espaços formais ou alternativos, democratizando as possibilidades de experimentação da poesia falada.

Diferente da geração marginal, que passava ao largo do establishment, negando-o e atacando seus meios de produção, hoje é como se esses questionamentos viessem de dentro do próprio sistema, visto que os poetas atuam profissionalmente nos ambientes acadêmicos e jornalísticos, vivendo em horário comercial experiências que serão transfiguradas no exercício crítico da escrita literária. A consciência de ser parte do jogo confere ao poeta uma espécie de missão libertadora das (o)pressões diárias.

Esse veio libertador está presente em “Cenas de Mortes Vulgares”. O belo projeto gráfico confere à obra, já na capa, um sentido vulcânico que irá irromper ao longo de todo o texto. A partir da (des)estrutura das partes apresentada no sumário, supõe-se que a leitura seja feita sem quaisquer critérios de linearidade. De fato, o afastamento de regras parece ser o élan da obra, cujo movimento de desconstrução das formas fixas se alia aos questionamentos das tradições autorais e institucionais: “E o que é Academia/ senão o que se esgota/ e somente pra si se basta/ bastando a bênção da idéia gasta?”

O autor estabelece, a todo tempo, relações entre a poesia e a vida diária, especialmente no que se refere àqueles indivíduos que exercem influência na constituição do poeta: “Gosto dos meus/ que não falam poesia, que não/ gostam de poesia, que não entendem/ nada da minha ou de qualquer poesia,/ mas fazem em mim a poesia/ não transubstanciada em qualquer lauda conhecida”. O sentido de despojamento, porém, não exime a obra de uma profunda erudição e apuro no trabalho com a palavra. Nota-se um parentesco temático – e mesmo léxico – de Augusto dos Anjos, poeta no qual Érico é especialista, mas sem apresentar a consagrada angústia da influência, como já aponta Roberto Pontes na orelha. As cenas de morte a que se refere o título transcendem o sentido telúrico rumo à possibilidade de renascimentos.

E por ser poesia viva, clara e esfuziante, “Cenas de Mortes Vulgares” é leitura recomendável para aqueles que vêem na literatura uma das formas de manifestação libertadora. E a voz expressiva, seja na leitura falada, seja na silenciosa, tem papel fundamental nesse processo, como atesta o poema “O Louco do Hortifrutigranjeiro”: “por um e noventa e nóvi tudo se vendi no mundo/ sem essesssão ou contratempu Mais êxxxte microfone não/ esse eu num vêndu// e ninguém me tira da mão!”

 

Extraviário – Dennis Radünz

O poeta catarinense Denniz Radünz compõe o imenso time de bons artistas que,   menos conhecidos no país do que deveriam, conseguem construir a sua trajetória lenta e criteriosamente. Cronista do Diário Catarinense, o jovem atua em tempo integral na cena literária do estado, seja na organização de debates e cafés literários, seja ministrando oficinas ou mesmo na própria observação de novos nomes e da crítica cultural nas mídias a que tem acesso. Com a atual multiplicação de eventos em torno da literatura, Dennis é o exemplo de um novo tipo de profissional das artes, cujas ações com caráter educativo, estético e social lhe poderiam conferir a denominação de “homem de letras”, com uma acepção mais voltada para as diversas práticas literárias do que para um beletrismo em torre de marfim.

Após a estréia com o premiado “Exeus”, em 1996, e “Livro de Mercúrio”, de 2001, o escritor blumenauense acaba de lançar “Extraviário”, em bem cuidada edição da Letradágua. São 25 poemas em formatos que variam de versos eneassílabos até experimentações mais lúdicas com as palavras. Livre de constâncias nas formas, abre-se a liberdade para o conteúdo. Já no próprio título, sugere-se que o poema constitui uma instância de algo que pode ser perdido, que não vai para o caminho esperado a priori. E, por isso mesmo, é que ele pode ser a via do extraordinário, dando espaço ao que não está na pauta do dia, além das palavras em estado de dicionário a que Drummond se refere em “Procura da poesia”.

Há nove epígrafes em “Extraviário”, cuja quantidade e disposição seqüencial se justificam pelo tema do livro, o qual aponta para a ausência (ou excesso) de rumos no mundo atual, como na citação do Talmude: “Se não sabes para onde vais, qualquer caminho te levará lá.” O poema, então, segue por um caminho atemporal,  que é a essência mesma da matéria lírica, suspensa e diluída pelos descaminhos do verbo. A dispersão, conduzida no livro pelo elemento água, sugere que a própria vida comum seja levada nessa via em que continuidade/descontiduidade estão sempre em conflito, como no poema “História Liquefeita”: “o rio é o rebento dessa margem/ a bordo de um resto de ribeiras:/ baldio ao desandar torrentes/ sobradas no barral da enchente:/ num rio de ires sonorosos: rim”.

Nessa zona de embate entre texto e fato histórico, merecem destaque dois poemas que abordam os atentados de 11 de setembro de 2001. O soneto “À Inconstância das Coisas desse Mundo” trata ironicamente das formas fixas e do quão frágil é a idéia do verso represado, pois “antes nasce do que o Sol e para sempre/ com sua forma fixa e rara, na certeza/ da firmeza desse World Trade Center.” Já no eufônico “Última Epístola ao Império”, assinala a representatividade do evento: “e a víbora da raiva – rápida – vibra em toda a relva/ (…) arrasta pelo ermo o turismo de desastres/ nessa indústria dos destroço, no rastilho sem a órbita/ a serpe do império – talvez o império serpe”.

Assim, como dizia Ezra Pound, o poeta é a antena da raça, tanto na propriedade captadora das muitas vozes que ressoam no mundo, mas também como o emissor invisível de algum tipo de recado. Essa freqüência dupla traduz uma experiência íntima da leitura e ao mesmo tempo mais geral, vislumbrando revelar os enigmas dos caminhos da sociedade.

Como nos livros anteriores, “Extraviário” apresenta uma dicção burilada, como se por um processo de decantação os recursos de criação poética emergissem no texto, trazendo à tona um sentido mais profundo, escondido – ou mesmo esquecido – que as palavras guardam. Um dos grandes problemas da literatura em geral está justamente na difícil relação dialógica do artista contemporâneo com as referências clássicas, os momentos datados de experimentações, as vanguardas e seus manifestos revolucionários. Dennis Radünz escapa a essas armadilhas. Sem qualquer presunção, o poeta estabelece diálogo com o passado a serviço do presente, acrescentando sutilmente a sua marca, a qual seria, inicialmente, a coragem de lidar com diferentes referenciais da literatura a serviço da unidade da obra, gerando um resultado de rara qualidade e beleza. Como o próprio autor define perto do fim do livro, em “Ghost-writer”, a leitura constitui “o lugar erradio em que o leitor se desorbita entre dois seres: o si mesmo e o ser no qual tornou-se, atravessado pelo texto”.

 

Sinfonia em branco – Adriana Lisboa

Quando se fala da atual produção romanesca brasileira, geralmente vem logo à baila a consagrada obra de Rubem Fonseca ou de seus clones. Por questões que vão desde o coleguismo empurrista até o marketing vaidoso de alguns autores (quem produz literatura precisa mesmo de assessoria de imprensa?), está se moldando lentamente uma pequena esfera diante da qual giram os satélites formadores das práticas leitoras. E assim o já minguado público consumidor de livros tende a restringir suas preferências a um mínimo conjunto de títulos pré-estabelecidos como um novo cânone, em detrimento da variedade de boas opções que têm saído das editoras.

E é desse grupo, livre de maneirismos e out-doors, que desponta uma pérola intitulada “Sinfonia em branco” (Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 224 págs.), segundo romance da carioca Adriana Lisboa. Apesar de ter apenas 31 anos, a autora conta com uma bagagem de vida bem profícua para a atividade de compor narrativas: foi cantora, flautista e professora. As reminiscências da infância na fazenda, o Mestrado em literatura brasileira e o trabalho de tradutora também contribuíram para o resultado do novo livro.

Ao longo da leitura é possível retirar sentido da capa escolhida, que transmite a idéia de uma porosidade quase indelével, sugerindo ainda a imagem de um abismo feito de pedra que, de fato, percorrerá toda a obra. A foto do português Henrique Dinis da Gama, na verdade, é um detalhe de uma rua, assim como todo o romance se constrói pela observação minuciosa de pequenas coisas e dos significados que elas ofertam. O título faz referência a um quadro do pintor inglês Whistler contendo uma mulher vestida de branco, mesclando som, imagem e palavra numa mesma metáfora.

A trama tem como centro as duas irmãs Clarice e Maria Inês. Em torno de ambas giram segredos, confissões, arrependimentos, e sobretudo uma cumplicidade muda. E também paixões e ódios que, de tão bem descritos nos seus efeitos sofridos pelo tempo, em alguns momentos fazem lembrar a força de “O morro dos ventos uivantes”, de Emily Brontë, romance que, segundo Raquel de Queiroz, é “talvez o maior livro de ficção escrito por mulher desde que no mundo se conhece a arte de escrever”. A comparação é justa.

Mas o que faz de “Sinfonia em branco” um grande romance não é a história que ele conta, e sim o modo como as personagens atuam. Com extrema delicadeza e até uma certa ternura, nota-se sempre uma evasão para um micromundo contido num detalhe do ambiente, num som distante ou mesmo na suprema grandeza de um silêncio. Desse modo, a prosa vai oscilando entre os fatos ocorridos e as pulsões interiores provocadas por eles, revelando a densidade psicológica que existe por trás de situações aparentemente simples.

O livro chama a atenção pela boa capacidade de conduzir o leitor. A todo momento são fornecidas informações que vão seduzindo e criando expectativas, reveladas total ou parcialmente de acordo com o ritmo que a narradora-regente impõe, inclusive pela contenção presente em praticamente todas as personagens: “Maria Inês fez uma pausa, avaliou o silêncio na ponta da língua e sentiu seu gosto doce-azedo, como o das balas de tamarindo.” O que não se diz passa a ter uma crescente relevância.

“Sinfonia em branco” deve ser lido devagar. Saboreado e apreciado como se fosse uma bebida rara. Adriana Lisboa conseguiu eficazmente captar o poético que reside nos detalhes cotidianos, costurando com palavras uma sinfonia de silêncios.

 

Lorde – João Gilberto Noll

Na escrita de João Gilberto Noll, revelada em “O cego e a bailarina” (1980) e recentemente consagrada com o premiado “Mínimos, múltiplos, comuns” (2003), uma das principais marcas é a presença de indivíduos que buscam a identidade a partir de uma decomposição no contexto social. Ou seja, rumam errantes para uma instância onde a própria noção de identidade só existe como algo naturalmente diluído.

Essa faceta está presente em “Lorde”, seu primeiro romance publicado pelo selo Francis. O texto trata de um escritor que, aos 50 anos, chega a Londres para executar uma tarefa até então enigmática, contratado por um inglês sobre quem, da mesma forma, pouca informação é fornecida.

A despeito desse mote, em seguida o personagem vai se desvencilhando do caminho principal e inicia um processo de desfiguração – à primeira vista material, mas sobretudo psicológica. Sua memória vai gradativamente sofrendo uma volatização, a partir da qual se erige o impulso de se recaracterizar em um outro: “Tudo se fundia em minha cabeça, feito a tintura e a maquiagem que escorriam pelo meu rosto patético no espelho. Tinha para mim que os meus passos se mostravam mais ágeis, irmanados de uma forma estranha ao ritmo veloz da multidão”.

O objeto espelho surge como elemento recorrente, cujas propriedades conferem ao personagem, em vez de reconhecimento de si mesmo, a possibilidade de realizar o exercício de alteridade em busca do seu duplo: “A sós, mirei a nudez que cabia toda no cristal, cercada de uma moldura dourada, coberta de relevos.” Por meio da pulsão erótica, corpo e alma atravessam os limites de um ser único para a dissolução nas outras figuras que emergem ao longo da história.

A tentação de ler o romance a partir dos vários traços autobiográficos contidos nele acaba sendo uma excelente armadilha para o leitor. Em vez de apresentar cada vez mais o autor nas páginas, a leitura é conduzida por uma sucessão de imagens sem amarras que adquirem a dimensão das incertezas literárias. Ao se metamorfosear em imensos vazios, o personagem não deixa de representar o momento sócio-histórico atual, em que a dispersão é já um traço celebrado, muitas vezes de maneira equivocada.

Nesse ponto, o romance de Noll vai além dos modismos literários das narrativas seriais e cíclicas, as quais, a partir do pressuposto das fragmentações, aplicam-na com excessos de formalismo em torno de pequenos eixos estilísticos. O autor de “Hotel Atlântico” não cede às facilidades das seduções formais que levam as novas gerações, por exemplo, a produzir textos com frases curtas e incessantes repetições de imagens entrecortadas, cujo resultado é cada vez mais palatável comercialmente.

A partir da leitura de “Lorde”, percebe-se que o sujeito estilhaçado, rumo à pulverização, é antes um problema e alerta para o campo das idéias do que apenas mais um fenômeno a ser explorado pelo mercado.

 

Mare Nostrum – Salim Miguel

“Mare Nostrum” é o primeiro romance do caratinense Salim Miguel publicado pela Record. O autor, que recebeu o Troféu Juca Pato como intelectual do ano em 2002 e recebeu o título de doutor honoris causa pela UFSC, venceu em 2001 o Prêmio Zaffari & Bourbon da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, com o romance “Nur na escuridão”.

Aos 80 anos e com 25 livros publicados, Salim é um autor – infelizmente –pouco conhecido fora dos estados do Sul. Ou, pelo menos, ainda não lido nacionalmente na proporção em que deveria, face à sua trajetória. O escritor participou do Grupo Sul, (relevante movimento que congregava a produção regional durante as décadas de 40 e 50) cuja revista foi recentemente relançada em edição especial. Foi um dos editores da revista carioca Ficção, além de ter dirigido a Editora da UFSC e a Fundação Cultural Franklin Cascaes, em Florianópolis.

O romance tem o mar como protagonista, ou seja, não se obriga a ter a estrutura convencional romanesca centrada na figura de um herói. Pode-se dizer que o herói é a própria atmosfera litorânea, sobre as qual as histórias se espalham. Alguns personagens recebem nomes que remetem a esse eixo temático (Amaro, Altimar), e as situações rústicas e comezinhas ratificam o ambiente criado.

No ato da leitura é que a obra revela seu aspecto lúdico, transformando “Mare Nostrum” numa obra que se enquadra nas categorias ditas pós-modernas, o que se evidencia pelo subtítulo “romance desmontável”. Uma leitura pouco atenta poderia dar a impressão de que o livro se trata de uma coletânea de contos, visto que os capítulos irregulares em tamanho e estilo – propositadamente – são ligados por filetes narrativos: um personagem, uma imagem, uma frase podem remeter a um capítulo já lido.

Daí o caráter “desmontável” do romance, cuja não-linearidade permite que o leitor escolha a ordem de leitura. A interferência do leitor nesse processo, remexendo as histórias previamente montadas pelo autor, torna a leitura mais rica e imersiva. Embora atualmente muitos escritores lancem mão do texto fragmentado pela incapacidade de narrar com simples coesão – o que parece estar virando moda –, o romance em questão é uma obra sofisticada e aberta – porém não escancarada – para a recriação literária.

Escrito durante 20 anos, “Mare Nostrum” vem coroar a obra do autor catarinense. Boa parte do livro se passa na pequena cidade de Biguaçu, onde Salim viveu durante a juventude após vir do Líbano, onde nasceu. Mas também há passagens na Bahia, África, Europa e, marcando as origens do autor, no Oriente Médio. São vários rios narrativos que Salim Miguel oferece para desembocarem no vasto mar das boas leituras.

 

Memórias dos Barcos – Marcelo Moutinho

A alegoria das embarcações é interessante para tratar do novo livro do jornalista Marcelo Moutinho. Os dez contos de Memória dos barcos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2001. 72 págs.) singram por uma prosa fluida e sofisticada, oscilando entre a narrativa intimista e a prosa poética, como anota Antônio Torres na orelha. A bela capa de Marcus de Moraes, uma imagem ofuscada de barcos repousando sobre uma água azul tranqüila, transmite eficazmente a idéia do conteúdo onírico-reminiscente da obra.

Assim como no seu livro anterior, Um certo medo da noite, Marcelo lança mão da linguagem poética, convertendo o narrador em eu-lírico. Isso pela influência de autores como Caio Fernando Abreu e Fernando Pessoa. Embora caminhando para  “matar os pais” e adquirir autonomia narrativa, ainda é perceptível uma bússola de Clarice Lispector, não só pelas epígrafe e citação no conto “Flores de inverno”, como também pela maneira introspectiva de apresentar ambientes e personagens. Além de uma tendência em alternar frases longas e curtas, estas às vezes isoladas – mas nunca à deriva – num só parágrafo.

O conto que dá título à obra estabelece uma relação metonímica com todo o livro, uma vez que reúne os elementos presentes em cada um dos outros textos. Retornando à pequena cidade onde crescera, o narrador observa a mudança que a paisagem sofreu com o tempo: “Do outro lado do rio, desfez-se a linha horizontal e ergueram-se prédios, edificações imensas que contrastam e constatam, imenso monitor cardíaco, o pulso disforme da cidade que um dia fora a vida.” As lembranças saltam como matéria da construção textual, tal como ocorre no ótimo romance Quase-memória, de Carlos Heitor Cony, em que cada fio contido em uma imagem simples (no nosso caso, os barcos azuis) pode ser puxado, revelando uma pequena história.

Cada conto é uma recordação (no sentido original de “trazer de volta ao coração”) que devolve ao leitor algo que nunca lhe foi tirado. Porque o lirismo permite um eterno rejuvenescimento do tempo presente, o que se evidencia quando o autor fecha o livro com o dístico de Mário Quintana: “O passado nunca conhece o seu lugar./ O passado está sempre no presente.” Esse deslocamento atemporal se dá pela evocação de imagens que, além de conferirem uma plasticidade quase cinematográfica ao texto, são também o mote para a expressão da carga íntima acumulada pelo narrador, como se percebe no conto “Sentimentos expressos”: “Já sentada dentro do vagão do metrô, tentava montar o quebra-cabeça daquele reflexo, enquanto as estações se sucediam. Os carros esvaziados, as plataformas desertas davam a dimensão dos seus vazios.”

Outra temática comum a todos os contos é a solidão, irmã da memória. A solidão urbana, a que assola a multidão aglomerada. A solidão dos casais juntos e dos separados, das crianças, dos seres que momentaneamente se encontram movidos pelo acaso, a solidão dos palhaços, a dos barcos ancorados. Mas em cada texto sobrepõe-se um movimento de reaproximação, às vezes contida porém esperançosa: “Ela trazia uma lua amarelada no lugar dos olhos, uns olhos mendigos, de quem quer salvação sem ter pecado.”

Longe de ser um derramamento sentimental autobiográfico, como ocorre a muitos que se arriscam a escrever de maneira subjetiva, Memória dos barcos é um convite para que o leitor sorva as narrativas cuidadosamente destiladas. E se ao fim da leitura ficar alguma mensagem, que seja a de uma nau retornando à costa: navegar é preciso; viver mais ainda.

 

Microafetos – Wladimir Cazé

Se na vasta produção literária contemporânea a prosa vem se diluindo numa profusão de temas, vozes e meios de distribuição, que dizer da poesia? Bem antes que os adventos editoriais permitissem impressões por demanda, favorecendo os escritores com edições menores a preços acessíveis, poetas de várias tendências já tentavam escoar de mão em mão a sua produção artesanal, gerada desde em mimeógrafos até nas reproduções de fotocópias reduzidas. Vanguarda por excelência, na acuidade das pontas de lança, o verso geralmente precede a prosa nos movimentos literários, ou se apropria com mais rapidez de novos recursos e suportes, como a Internet.

Há pelo menos um aspecto negativo nesse processo. Como vem acontecendo nos dias atuais, a facilidade de publicação torna cada vez mais difícil identificar a qualidade literária no imenso volume de obras que vêm circulando. As publicações independentes têm adquirido tal dimensão que em meio aos inúmeros lançamentos despontam livros de qualidade surpreendente, como a coletânea de poemas “Microafetos”, do pernambucano Wladimir Cazé.

Com o suporte da bem aplicada arte gráfica de Iansã Negrão, boa parte dos 44 poemas atribui sentimentos aos seres diminutos da natureza. Formigas, borboletas, abelhas e caramujos simulam angústias, medos e paixões, traduzindo na personificação uma espécie de refúgio das sensações humanas. O recurso da prosopopéia, entretanto, funciona apenas como suporte para o projeto poético do livro. Já no poema de abertura, “Geração”, o leitor pode constatar a noção do lugar do poeta: “Descansa o incêndio/ dentro do ovo./ Uma fênix em repouso. (…) Raiz de proveta./ A planta ainda/ está na pétala.”

As quatro partes do livro (“Caterva”, “Fauna miúda”, “Microafetos” e “Ocasiões”) oferecem uma profusão de aliterações, eufonias e ritmos cadenciados. O autor, já experiente na publicação de cordel, lança mão de uma eficiente habilidade melopéica, sem necessariamente deixar os poemas à mercê de formas fixas. A opção favorece uma leitura imagética e sobretudo lúdica dos textos, como no dístico “Malandra”: “Salamandra se dissimula/ apta a uma samambaia.” Ou mesmo na série de quartetos que intitula o livro: “No calor de uma tarde ecossistêmica,/ a química da abelha esquizofrênica/ desregula o amor clínico:/ clima idílico num país caótico.” Residente em São Paulo desde 2003, Cazé situa também as mazelas urbanas no movimento da miniaturização: “Da capa de uma revista,/ escapa um capitalista,/ entra num frasco sem rótulo/ ou numa caixa de fósforos.”

A circulação de “Microafetos” tem ocorrido nos eventos que vêm surgindo na cena literária contemporânea. A Edições K, lançada em 2004 na FLIP (Festa Literária de Parati), é na verdade uma cooperativa de autores que, em diferentes pontos do país, organizam circuitos de lançamentos em livrarias, sebos, bares, bibliotecas ou quaisquer outros espaços que permitam o contato direto autor-leitor. Em meio à prolífera quantidade de lançamentos, temos aqui um belo exemplar de poesia com valor literário.

 

O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos – Alberto da Cunha Melo

Em termos de reconhecimento do público, a obra de Alberto da Cunha Melo passa por caso semelhante ao que ocorreu com a de Dante Milano: apesar de muito admirados por grandes poetas e críticos, seus livros não são lidos na mesma proporção. A esse fato soma-se a relativa baixa procura que uma poesia mais formal tem recebido, em função de uma tendência à – já claudicante – supervalorização da performance em detrimento da técnica e da profundidade.

Como uma forma autêntica de resistência, acaba de ser lançado O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos. Resistência em vários sentidos, se considerarmos também as temáticas abordadas pelo poeta, que atravessam as situações mais comezinhas rumo ao questionamento da existência humana. Melhor dizendo, o cotidiano povoado de cenas cruas é usado como ponte para uma transcendência das idéias, parentesco que situa Alberto da Cunha Melo com seus conterrâneos Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Aliás, o apuro técnico aplicado aos temas simples segue, de certa forma, a linha mais tradicional da poesia cantada do Nordeste.

A primeira parte do livro é composta por renkas, uma forma extinta de poesia japonesa que precedeu o hai-kai. Cada estrofe é composta por cinco versos, dos quais os dois últimos irão se repetir no início da estrofe seguinte, como no poema “Balança”: “Mudar de cruz e não de ombro/ deveria ser um descanso,// Mudar de cruz e não de ombro/ deveria ser um descanso,/ mas, há um risco: a nova cruz,/ feito pijama de hospital,/ poderia não ter seu número.// feito pijama de hospital,/ poderia não ter seu número./ Nessa alta idade você pode/ roubar no jogo e, até mesmo,/ furar a fila da indulgência.”

Essa disposição dos versos evoca um paralelismo de idéias que, aliado à rima (esta nada menos que o recurso mais prazeroso da repetição poética), constitui o fundamento da própria poesia. O recurso do paralelismo, aliás, remonta às formas ancestrais das formas poéticas, quando a palavra se submetia à música e à dança, associada aos ritos, mitos e magias dos povos primitivos. No caso da poesia escrita, ao se ler por duas vezes as sentenças, as imagens e idéias são recriadas e reforçadas no novo conjunto. O que à primeira vista poderia soar como redundante acaba por suscitar uma experiência tão agradável quanto ler/ouvir as trovas medievais ou um cordel.

No restante do livro, são apresentados poemas esparsos, em muitos dos quais o poeta cria novas formas fixas, estabelecendo uma relação com as vanguardas literárias – às quais não aderiu, salienta numa nota, porém respeitando-as. Cunha Melo parece realizar suas experiências do verso para dentro, e não o contrário. Isso pode afastar o leitor que espera da literatura uma parafernália visual (em formato de roda reinventada), mas oferta um tipo de poesia essencial baseada na palavra.

A poesia é a mais aguda forma de manifestação da palavra escrita. Por meio da desordenação – e a possível conseqüente reordenação – da perspectiva íntima da vida, o poder silencioso dos versos “(…) nesta casa,/ ninguém pode morrer dormindo,/ tem de acordar para morrer,/ que agonizar é seu destino;// ouçam os pássaros, lá fora/ eles cantam o aqui e o agora.” A agonia humana diante da placidez inexpugnável da natureza parece ser uma temática recorrente no livro, como se filtrasse a vivência árida e cáustica da realidade social nordestina – e, por extensão, brasileira. O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos retrata, como aponta a cor explicitada no titulo, a dor como etapa necessária para a vida: “Pra cantar o desconhecido/ é preciso dormir/ com as fêmeas feridas,/ e ensiná-las, de novo, o caminho da volta.”

Numa época na qual, em meio à diversidade formal e temática, sobressaem-se manifestações poéticas voltadas para uma prática circense e pirotécnica, merece atenção a resistência de artistas como Cunha Melo, que se preocupam mais com dificuldade técnica de uma escrita simples.

 

O delicado abismo da loucura – Raimundo Carrero

Na comemoração dos 30 anos de atividade literária do premiado Raimundo Carrero, foram produzidos o documentário O caçador de assombrações, e uma fotobiografia, com entrevista, ensaio e fortuna crítica, a ser lançada neste ano. Dentro deste projeto, a Iluminuras está relançando, num único volume, os três primeiros livros autor de “Somos pedras que se consomem”. A reunião é composta por “A história de Bernarda Soledade”, “As sementes do sol” e “As duas faces do baralho”.

A primeira novela trata da luta de Bernarda Soledade para administrar a fazenda da família, ao lado da mãe e a irmã caçula. Escrita aos 23 anos, foi definida por Ariano Suassuna como segunda representação literária do Movimento Armorial – tendo a primeira sido o seu clássico “Romance d’A Pedra do Reino”, reeditado recentemente pela José Olympio -, devido ao caráter intimamente ligado às origens do romanceiro popular nordestino, em que uma pulsão medieval e de rústica nobreza se ergue perante um ambiente marcado por diferentes níveis de conflito.

No caso da protagonista, a luta para manter as terras de Puchinãnã é cercada pela necessidade de proteção diante da ameaça masculina, marcada pela inexpressiva atuação de seu pai e pela presença insidiosa e ao mesmo tempo sedutora do tio Anrique – forma ancestral de “Henrique”, num cuidado da aplicação de nomenclatura em prol do ambiente medieval. Essa ameaça, por vezes, vacila perante o desejo, e torna a sublinhar  um emblema da força das personagens. Tais características do Movimento Armorial, explicitadas em cenas de impacto imagético, como as batalhas pelo domínio das terras e as referências de uma heráldica nordestina, permitem que a narrativa seja carregada de descrições. Logo no início, o ambiente conflituoso é apresentado: “Os cavalos brabos, indomáveis, coiceiam o vendo dentro do curral. Amontoam-se, relincham num tropel medonho. (…) Tão valente e brabo, igual aos animais, é o vento que sopra agora açoitando a mata, assustando os fantasmas”. Fosse em outro tipo de narrativa, o excesso de descrições ao longo da história soaria anacrônico, porém aqui é parte de uma necessidade visual intrínseca à narrativa proposta, fazendo da novela um dos principais textos dentro da obra de Carrero.

Já “As sementes do sol” conduz o leitor para a reordenação – ou desordenação, pois que trata, como a novela anterior, da angústia inevitável – da família de Davino após a morte de sua mulher. De forma análoga à posição antagônica de Anrique na primeira história, aqui é irmão do protagonista que exerce a função de provocador na trama, exercendo influência sarcástica, quase mefistofélica junto aos sobrinhos. O recurso de alternar avanços e flashbacks na história já indica maior esmero de construção do texto, engrandecendo as relações entre os personagens.

A última novela, “A dupla face do baralho” é a única das três narrada em primeira pessoa, o que contribui para o caráter verossímil das confissões do velho policial Félix Gurgel. As lembranças da vida cercada por tipos marginais, como bêbados prostitutas e ladrões, leva o personagem a uma espera amargurada do próprio fim: “Ultimamente, em todos os fins de tarde, (…) sento-me na cadeira de balanço aqui da calçada da minha casa, esperando a morte. Desde criança imaginei-me morrendo num fim de tarde”.

Embora as três novelas ainda não apresentem os avanços formais conquistados na maturidade, como em “Ao redor do escorpião… Uma tarântula?”, já se percebem as linhas temáticas preferenciais da narrativa de Raimundo Carrero: a angústia das relações humanas, a solidão e um sentido agônico que permeia tudo e todos. Uma vez que se passam no agreste, soma-se ainda uma ambientação mítica que resvala, em alguns momentos, no realismo mágico. Nota-se também o apuro no desenho equilibrado de cada personagem, o qual é, conforme Carrero apontou no seu guia “Os segredos da ficção”, o elemento principal de toda narrativa.

Desse modo, “O delicado abismo da loucura” apresenta novelas que asseguram a qualidade do autor pernambucano, conforme assinala o crítico José Castello, ao afirmar que “não é comum que um escritor inicie seu percurso literário remexendo com tanto desassombro, em universos arcaicos e dúvidas primordiais”.

 

O outro lado – Ivan Junqueira

O tempo além do tempo – Ivan Junqueira

Escritor de reconhecida atividade envolvendo poesia, crítica e tradução, além de alguns dos prêmios literários mais importantes, Ivan Junqueira tem a capacidade rara de se reinventar a cada livro, ainda que se mantenha firme na sua trajetória poética, em que o texto não se submete a modismos e facilidades técnico-formais. Desde a estréia como poeta em 1964, a opção pela densidade tem significado ir de encontro a uma certa tradição da ruptura resultante das experimentações pós-modernistas, negando ainda uma tendência declamatória e performática que acabou relegando o texto a um segundo plano nas realizações poéticas.

Pela casa editorial portuguesa Quasi Edições, acaba de sair “O tempo além do tempo”, antologia organizada por Arnaldo Saraiva. No excelente prefácio, o crítico lusitano apresenta uma sucinta exegese da obra de Ivan Junqueira, situando-o no retrato da poesia produzida a partir da segunda metade do século XX. Na reunião, é possível observar a fidelidade com que o poeta se mantém dentro de um projeto literário. A preferência pela métrica, o verso curto como suporte para uma narratividade em textos mais longos, a evocação de autores da Antigüidade e a obstinação pelos mesmos temas são aspectos que perpassam todas as obras, abrangendo desde a estréia com “Os mortos” a poemas até então inéditos. Para quem nunca leu um livro inteiro do autor, a antologia constitui não apenas uma amostragem, mas um conjunto homogêneo.

Alguns poemas de “O tempo além do tempo” também aparecem no volume “O outro lado”, cuja produção abrange o período de 1998 a 2006. Desde 1994, com o vencedor do Jabuti “A sagração dos ossos”, o autor não publica um livro apenas com novos poemas, de maneira que esse assume lugar marcante na fortuna de Ivan Junqueira. Dado o intervalo da passagem entre os milênios em que foi escrito, não por acaso a temática da transição surge a todo tempo, condensada numa das idéias recorrentes em toda a obra do autor: a morte.

Convém apontar para um aspecto dessa temática: não se trata de uma celebração do nefasto, tampouco um réquiem poético entoando a eminência de uma despedida. No livro, o olhar que mira o outro lado muitas vezes também se volta para fazer uma espécie de balanço do próprio legado poético de Ivan, como em “O mesmo: o terceiro”: “O que escrevi foi sempre o mesmo/ poema, e os mesmos são os dedos/ que nele enrolaram o novelo/ dos muitos eus em destempero/ que ali convivem e se odeiam/ à sombra de um só parentesco.” No lugar de assombro, a morte assume o ar da “indesejada das gentes” de Manuel Bandeira, em cuja poética a figura da morte se espraia como uma companheira eivada de mistério e portadora da inexpugnável beleza a que todos os homens se destinam.

Em meio a esse ambiente, insurgem ainda poemas de conteúdo lírico-amoroso. O amor está presente no rondó “São duas ou três coisas” e no soneto “Eu te amo tanto” com um teor tão suave que se aproximaria do limite da pieguice, se ambos não estivessem imersos no conjunto do livro, atribuindo-lhes um sentido mais amplo, nos quais a beleza se evidencia pela claridade contrastante com a idéia de fim – dualidade sugerida na própria capa.

Ivan Junqueira é uma das grandes vozes da literatura contemporânea, tendo optado pelo caminho mais difícil e exigente dentre os poetas, aquele do rigor técnico associado a uma necessidade de reflexão, sem perder em nenhum momento o veio da beleza. Poeta que nesses dois livros se confirma como “sendo esse leque/ de coisas fluidas e inquietas”.

 

Pelo fundo da agulha – Antonio Torres

Antônio Torres escreve musicalmente. Em palestras e oficinas que ministra pelo país, deixa clara essa associação no seu processo criativo. O resultado é uma prosa que traz o embalo do jazz e a melodia na leitura. Diferente de várias tendências da moda nas literatices, Torres não tem intenção de asfixiar o leitor: antes, convida-o para dançar.

O lançamento de “Essa Terra”, em 1976, trouxe novo fôlego ao debate acerca do dualismo sertão/cidade. O romance, hoje na 21ª edição, narra o fracasso diante da migração nordestina para locais com promessa de vida melhor. Totonhim assiste à desintegração das suas referências familiares quando os pais e irmãos se mudam de Junco (hoje chamada de Sátiro Dias) para Feira de Santana, outra cidade do interior da Bahia, e acabam por mergulhar ainda mais na pobreza. Lá, o banco emprestara dinheiro ao pai sob a condição de que plantasse sisal, uma cultura que não vingara, deixando-o endividado; sem perspectiva, os irmãos fogem de casa tão logo estejam crescidos. E a tragédia mais lancinante: o suicídio do irmão mais velho Nelo que, após fracassar em São Paulo, não encontrou mais referências na cidade que deixara para trás. O personagem se tornou, na literatura brasileira, um símbolo da perda da dignidade humana perante as sucessivas derrotas sociais. Enforcado num gancho de rede, Nelo sequer teve o direito a se pendurar num lugar mais alto para dar cabo da própria vida.

Diante desse quadro, restou a Totonhim seguir o caminho do irmão, rumo a São Paulo, para tentar superar o atraso em que a família se encontrava. Ainda que lutando com a possibilidade de repetir a história de Nelo, vinte anos depois Totonhim retorna à cidade natal, onde, tal como acontecera ao outro, já era um estranho. Esse regresso é narrado em “O cachorro e o lobo”, lançado em 1997. Ali, a memória constitui o caldo grosso onde flutuam, em permanente conflito, as expectativas e frustrações dos seus personagens, em especial no embate de Totonhim com o pai: “Como se algum filósofo lhe tivesse soprado ao pé do ouvido que não é a fé que remove montanhas, mas o complexo de culpa.” Revisitar o passado não o leva ao suicídio, mas o aglomerado de perdas – da topografia às pessoas próximas – endossa a perda da sua identidade. Espaço e tempo lhe escapam pelos dedos, construindo para o personagem um ambiente físico e psicológico segundo o qual a realidade é um imenso e, paradoxalmente, exteriorizado oco.

E a consciência desse vazio imenso está em “Pelo fundo da agulha”. No desfecho da trilogia, Totonhim se vê no seu quarto, em São Paulo, abandonado pela mulher e filhos, na primeira noite após se aposentar. Financeiramente, sua jornada não foi desfavorável. No entanto, a solidão lhe preenche como a um aquário com peixes moribundos, num delírio formado por lembranças que desfilam pelas quatro paredes. Entre o sono e a vigília, o protagonista olha o próprio passado como se fosse pelo buraco de uma agulha, na qual sua mãe, idosa porém com mão firme, passava a linha.

Dentre as recordações, percebe-se um tom de auto-ironia, manejado com destreza pelo uso recorrente do discurso indireto livre, no qual a narrativa se desdobra em si mesma, dando lugar a uma segunda voz: “Agora ele avistava um sinal amarelo. Esperar. Mas atenção! Olho vivo nos semáforos. Cuidado para não ser atropelado. Como entrar na cidade e integrar-se nela? Com a ajuda de um, a mão de outro e empurrões da sorte. E prestando muita atenção aos seus sinais. Avante, camarada!”. O riso de agonia é, ainda que de forma resignada, um viés possível de compreensão que o personagem tem de si mesmo.

“Rever é perder o encanto”, já arrematou Millôr Fernandes. Na trilogia de Antônio Torres, rever significa trocar um desencanto por outro. A angústia se torna o território inexorável, onde irremediavelmente vai aportar a trajetória humana. Totonhim parece lembrar a famosa trova de Francisco Sá de Miranda: “Comigo me desavim,/ Sou posto em todo perigo;/ Não posso ficar comigo/ Nem posso fugir de mim.” Sua jornada é, então, cerzida pelo olhar que passa pela lupa mínima do buraco de uma agulha, capaz apenas de vislumbrar as ausências acumuladas.

Com “Pelo fundo da agulha”, Antônio Torres convida o leitor para dançar, susurrando-lhe no ouvido a dissolução por que passamos. A saga de Totonhim, de certa forma, traduz a própria curva de desencanto da sociedade brasileira nos últimos 30 anos, representada no cidadão cujas raízes se fragmentam, cada vez mais destituídas de som e fúria.

 

A arca da escrita desenhada a cem dedos – Família Ramos Amado

Mesmo com poucos anos de existência, já é possível afirmar que o surgimento do e-mail foi um dos maiores avanços dos meios de comunicação. Situado entre a carta e a ligação telefônica, é mais livre que a primeira, porém não chega a ter a fugacidade da segunda. O correio eletrônico é, portanto, um modo perfeito de se transmitir e receber uma mensagem de conteúdo informal mas que não se evapore (a sentença verba volant, scripta manent se mostra mais uma vez aplicável).

As manifestações literárias, naturalmente, não poderiam – nem deveriam – fechar os olhos para esse novo modo de expressão escrita. Na ficção já fez muito sucesso o romance epistolar, no qual toda a narração é disposta em forma de cartas, como em Drácula, de Bram Stoker, ou Lucíola, de José de Alencar. Ou simplesmente eram reunidas em volume as correspondências de autores consagrados, de teor geralmente familiar, estético ou amoroso – aqui serve como exemplo a publicação das cartas trocadas entre Simone de Beauvoir e Sartre. Com toda essa tradição do gênero, somada ainda à difusão da escrita proporcionada pelos computadores, não tardaria a surgir um livro composto apenas por e-mails. E feito por jovens, certamente os que dominam com mais eficácia a nova prática de mensagens instantâneas.

Escrito por garotos, e direcionado a jovens de corpo e/ou espírito, vale como sugestão o livro A Nave de Noé (Rio de Janeiro: Record, 2000. 256 págs.), dos primos Ramos Amado. Luiza, filha de Graciliano, casou-se com James, irmão de Jorge, e assim as duas famílias se misturaram. Não se deve esperar, contudo, que os dez meninos e meninas tenham se preocupado em dar prosseguimento à “alta literatura” dos antepassados. Antes, escrevem informalmente, já que se trata de correio eletrônico.

Essa espontaneidade das mensagens gera uma boa sensação durante a leitura, principalmente pela exposição das intimidades dos primos, com as quais o leitor facilmente se identifica por estar vivendo ou ter vivido várias das situações narradas. Segredos familiares são compartilhados com o leitor (às vezes acrescidos com cinismos leves: “espero que minha mãe não leia isso” ou “primos, não contem isso a ninguém”), tornando-o cúmplice das peripécias adolescentes, uma espécie de voyeur que se apraz da mera observação do sigilo alheio.

O fio condutor da história são as especulações sobre o motivo pelo qual outros dois primos, os irmãos Juca e Pedro, nunca se falaram. Em torno giram a ascensão da TPM (uma banda só de meninas), os novos casamentos dos pais separados, o suposto fim do mundo na virada do milênio, além de todo um universo de fatos característicos da faixa etária dos autores – de treze a dezesseis anos. Tudo isso escrito com muita graça e despojamento.

Alguns momentos são especialmente divertidos, como as mensagens de Bel, cujo computador não possui acentos nem cedilha, falha que ela mesma converte em elemento construtor do texto: “Mas aih jah viu, neh?”; “Ve se voces me dao uma forca – se for sem cedilha, pode ser para a minha mae”. Ou as reflexões criativas de Caco: “No Brasil, ninguém se preocupa com uma grande banda feminina. O povo tá ligado é numa grande bunda feminina. (…) Incrível como uma simples letrinha faz tanta diferença.”

“O humor nos fez mais jovens, com vontade de brincar e fazer arte”, afirma um dos primos na apresentação, revelando que o livro é antes de tudo uma aventura lúdica da linguagem. Escrito a distância por dez cabeças e cem dedos, A Nave de Noé vem alegremente nos lembrar de que a literatura estará sempre conjugada com os novos meios, já que o avanço tecnológico é só mais um suporte das experiências humanas.

 

Tarde – Paulo Henriques Britto

Com “Macau”, de 2003, Paulo Henriques Britto arrebatou o Prêmio Portugal Telecom de melhor livro escrito em língua portuguesa. Considerando que a poesia geralmente fica em segundo plano nos grandes acontecimentos literários, além de ser menos divulgada e – talvez por isso mesmo – vendida se comparada à prosa, o fato causou surpresa. Desde o título, em que a região chinesa onde se fala português serve como símbolo do poeta cercado por uma multidão para quem é ininteligível, o livro consolidou a produção em versos de Paulo Henriques, já reconhecido pela competente atividade de tradução, especialmente da complexa obra do romancista norte-americano Thomas Pynchon.

Depois de “Macau” e da ótima coletânea de contos “Paraísos artificiais”, foi lançado recentemente “Tarde”, o seu quinto livro de poemas. Sob vários aspectos, o novo trabalho guarda semelhanças com a obra premiada, como a manutenção da temperada mistura de auto-ironias, o domínio das formas fixas em prol de um conteúdo leve e a consciente situação da poesia na contemporaneidade.

No último século, um dos assuntos recorrentes da poesia é discussão em torno do próprio fazer poético. Apesar de muitas vezes cair num tipo de eco ressoando numa casa de espelhos, a metalinguagem nos poemas de Paulo Henriques está a serviço de um projeto de  questionamento crítico em torno da construção literária: “(…) quem garante/ que este modo de atrelar pensamentos/ seja pior que outro qualquer? que o antes/ não possa vir depois? que o encadeamento/ tenha que obedecer a algum sistema?” O recurso do humor, com a inserção de termos coloquiais em versos habilmente metrificados, ressalta esse aspecto insubmisso do livro.

Sim, porque o autor lança mão de todo um arsenal de formas e recursos técnicos utilizados na complexa arte de escrever poemas: terza rima, rimas raras, sonetos e suas variações, enjambement e mais tantos elementos. (Convém mencionar que, hoje, boa parte dos poetas dispensa o uso da técnica, menos por proposta estética do que por necessidade de estudo e prática.) Paulo Henriques domina os versos como um malabarista rigoroso que se finge distraído, cuja precisão formal se disfarça sob uma fluência de idéias: “Difícil, sim. E é por isso que encanta. / Há que sentir – e aí está o fascínio – / com a rima atravessada na garganta.”

Todos esses aspectos, reunidos, geram o fator que situa “Tarde” entre as grandes realizações poéticas dos últimos anos: o espaço onde o poema se assume no mundo. Alheio a quaisquer utopias salvadoras, o eu-lírico é consciente da sua limitação.  “Como tentar se é tão fácil/ conformar-se de saída/ com a idéia de fracasso?” Certo de que o poema não irromperá como salvação idílica do real, resta-lhe a realização discreta nas fissuras entre o texto e a vida.

Desse modo, o fazer poético está circunscrito a um perímetro, inicialmente, restrito ao paradoxal reflexo das opacidades: “Um escrever que é verbo intransitivo/ que se conjuga numa só pessoa”. No caso, a idéia remeteria a um tipo de aceitação ou reconhecimento de que, realmente, a poesia hoje é feita para um grupo limitado de apreciadores, quase todos também poetas insulados nas suas vozes. Idéia que, numa leitura mais apurada, logo se desfaz. Isso porque o poema, de fato, não dá conta da vida, não se pretende uma pulsão de transcendência lírica, tampouco qualquer experimentação visceral com máscara de vanguarda. Em “Tarde”, os versos não querem ser a representação de um pássaro, mas se sabem alpiste: “Mas não há um lugar/ onde se possa estar,/ mesmo que ausente?”

A poética de Paulo Henriques Britto, portanto, está liberta do fardo das tradições e das rupturas, e é a partir dessa consciência que os poemas trafegam livres e suaves na leitura. O tom bem humorado e arisco, porém, é apenas mais uma camada sutil, dentre tantas outras. A literatura nasce exatamente na existência múltipla dessas camadas, e tão melhor é o livro quanto menos visíveis elas sejam, como ocorre em “Tarde”.

 

Faz que não vê – Altamir Tojal

O jornalista Altamir Tojal militou na resistência à ditadura e hoje atua como consultor de comunicação corporativa. Alguns elementos da sua trajetória pessoal foram utilizados para a construção do thriller político “Faz que não vê”, sua estréia no romance. Já decorrido algum tempo entre os anos de chumbo, o ressurgimento claudicante da democracia e os dias atuais, é possível pensar mais criticamente a relação entre esses períodos, de modo a se compreender melhor o cenário brasileiro contemporâneo. O livro narra esse processo de escoamento das utopias pelo ralo do pragmatismo destituído de ética.

Na Era Collor, Delano tem a função de intermediar uma negociação para um investimento milionário na Zona Portuária do Rio de Janeiro, envolvendo-se num emaranhado de interesses de políticos, empresários, sindicatos, além do crime organizado. Como resultado da tramóia, o protagonista é ameaçado de morte, simula o próprio seqüestro e se refugia em Ponta da Esmeralda, um vilarejo isolado no Nordeste, de onde conta a sua história.

No romance, as tentações e os vícios do mundo corporativo fagocitam os ideais de resistência e justiça, como se naturalmente o processo histórico se encarregasse de suprimi-los. De forma rápida e vertiginosa – e eis que a narrativa de frases curtas se mostra eficaz -, o militante Delano se converte num yuppie gomado e financeiramente bem-sucedido. Como bem afirma Antônio Torres na orelha, o romance tem ritmo ágil, quase telegráfico, descritos como um roteiro de filme de suspense.

De fato, o aspecto formal das frases curtas, que em muitos livros soam gratuitamente a serviço de um modismo fragmentário, aqui casa bem com a idéia do romance. Durante o diálogo de Delano com uma deputada, enumeram-se os assuntos testemunhados pelo sofá do gabinete: “Do contrabando e do tráfico à receptação e à lavagem de dinheiro. Proteção da polícia. Queima de arquivos. Ah, as licenças que o álcool dá! Línguas soltas. A conversa virou sussurro sobre fiscais da alfândega, delegados, juízes, jornalistas e até donos de depósitos de mercadorias, frotas de caminhões, postos de gasolina, casas de câmbio. Doleiros.” As mudanças de cena, ocorridas rapidamente, sugerem um clima de cinismo nas relações humanas, atropeladas por um mal imenso e  abstrato chamado mercado, que justificaria toda a pulverização por que passam os personagens.

A morte simulada de Delano não sugere arrependimento ou tentativa de redenção. É apenas uma fuga, de cujo relato as revelações e denúncias são apenas conseqüências. Cabe a Cecília, ex-amante de Delano, procurá-lo e tentar desvendar o desaparecimento, num dos sutis e, por isso mesmo, valorosos movimentos de lirismo do romance, quando as seqüências de maracutaias cedem espaço a algo que não esteja ligado à busca por dinheiro e poder.

A trajetória declinante do protagonista, na qual a liberdade se converte em oportunismo inescrupuloso, não parece surpreender o leitor. Mas também não é essa a intenção, num tempo em que histórias de corrupção já não chocam mais ninguém. Segundo o próprio autor, inclusive justificando o título do livro, trata-se de uma realidade que “todos conhecemos, mas, muitas vezes, tentamos não ver e esquecer”.

 

O transplante é um baião-de-dois – José Maria Cançado

O coração é, sem dúvida, a parte do corpo mais explorada simbolicamente. As civilizações antigas conferiam ao órgão a função de origem da inteligência e pensamento. Na cultura ocidental, recai sobre ele a fonte de todo o sentimento humano.  Complementares, ambos os aspectos atribuem ao órgão a idéia de ser o centro do corpo. De fato, do latim cor, cordis, chegaram-nos também os termos correlatos “recordar” (com o belo e sugestivo significado de “trazer de volta ao coração”), “decorar” (guardar no coração) ou mesmo concordar (partir do mesmo coração) e “coragem” (próprio do coração).

Essa pluralidade semântica e etimológica do termo, que transcende sua função concreta para abstrata, é recorrente em praticamente todas as culturas, de maneira que,  naturalmente, o coração constitui uma das temáticas mais utilizadas na literatura. Ainda que pareça, sob o olhar de hoje, ter sido abordado à exaustão, não é raro que a potência de uma palavra ou idéia seja renascida na literatura com sincera autenticidade.

Em 2004, o escritor, jornalista e professor mineiro José Maria Cançado foi submetido a um transplante de coração. Ainda na UTI do SUS, escreveu o livro de poemas “O transplante é um baião-de-dois”, lançado em 2005 pela editora Scriptum. Trata-se de um único e longo poema, subdividido em dias e horários específicos, como um diário escrito com ritmo irregular, em diferentes batidas, com aliterações, rimas, eufonias, e versos de tamanhos diversificados. Já no início, situa o palco onde serão travadas as batalhas e o diálogo com o novo órgão: “esse coração, seu navegar de capitão pelicano/ de quem viu seu navio a pique,/ faz desse puxado SUS da UTI/ um aberto anti-salão Titanic”.

Longe de ser uma obra que desperte ou busque compaixão, ou mesmo que constitua um livro-denúncia sobre a situação da saúde pública brasileira, temos aqui um momento raro de criação literária que se eleva sobre a condição humana e sua relação com o outro, em nível mais que sentimental ou existencial, mas no limite da própria sobrevivência. A presença de uma parte de outro constituindo e habitando o seu próprio corpo, um novo motor, traz à luz a experiência-limite da interdependência, personificada no enigma da doação. O livro trata, portanto, da relação de oferta única e essencial para a permanência no mundo. Para que esse processo se dê, o eu-lírico se funde com o homem que escreve o poema, que o recebe assim como recebeu o novo coração. Em vez de morte, verbo; no lugar do trauma, poesia.

Nesse sentido, “O transplante é um baião-de-dois” estabelece uma relação metalingüística com o próprio movimento do poema para o leitor. O coração sem nome recebido por Cançado foi replicado no próprio livro, que por sua vez tem a chance de ser recordado – com a acepção mencionada no início – na ocasião da leitura.

O caminho da fusão íntima e sua conseqüente dispersão no humano se dá no ato de reconhecimento do que é alheio: “Conhecemos as palmas que dois corações batem/ em dueto, o mesmo padrão de coração no meio// ?As que bate um só coração, com uma única mão,/ para o coração que ele será do outro lado do espelho?” Desdobrar-se, no livro, é tornar-se um. Numa época em que a auto-suficiência vem prevalecendo nas relações humanas, “O transplante é um baião-de-dois” pode ser traduzido como um tipo de manifesto questionador e inquietante.

José Maria Cançado faleceu em 2006, aos 54 anos, após complicações cardíacas e problemas de rejeição decorrentes do transplante. O poema permanece público, como lhe havia sugerido o coração anônimo. Ao fim do livro, o autor explicita numa nota que não pretendeu escrever o relato de uma superação de obstáculo, tampouco algo que se aproximasse de auto-ajuda, mas “talvez hetero-ajuda, essa que se constitui na alteridade, não no ganho e apropriação mas no jogo e mistério identitário”. Esse duplo deslocamento revela que a poesia, para estar em si, precisa buscar sobretudo o outro.

 

Veneno antimonotonia – org. Eucanaã Ferraz

“Tu pisavas nos astros distraída”, verso de Orestes Barbosa para a música “Chão de Estrelas”, é considerado por muitos o mais bonito da língua portuguesa. Poetas como Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida já o exaltavam, sendo que este sugeriu a gravação em ouro do decassílabo na Academia Brasileira de Letras.

Nas últimas décadas, o excesso de depuração acadêmica criou um mito separatista entre poesia e música, como se fossem artes que se excluiriam. Parecem esquecer que durante séculos foram a mesma coisa, antes de a vulgarização da leitura silenciosa permitir autonomia estética de cada uma dessas manifestações. Atualmente a poesia vem dialogando, ou melhor casando, com outras artes e formatos, explorando os suportes fornecidos pelas artes plásticas, performances, ambientes virtuais e, obviamente, a música. Esse retorno das letras lidas com as cantadas está oportunamente marcado na antologia “Veneno antimonotonia”, organizada pelo poeta Eucanaã Ferraz.

O livro reúne obras de vinte autores: dez poetas (Ana Cristina Cesar, Armando Freitas Filho, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Francisco Alvim, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Murilo Mendes e Oswald de Andrade), sete compositores (Adriana Calcanhotto, Aldir Blanc, Caetano Veloso, Cazuza, Chico Buarque, Gilberto Gil e Noel Rosa), e três que transitam entre os dois mundos (Antonio Cícero, Wally Salomão e Vinicius de Moraes). Qualquer que fosse a seleção, estaria aberta a discussão acerca das ausências e presenças de nomes, privilégios de uns em detrimento de outros. Seria possível reclamar a falta de um Renato Russo, Leminski ou poetas mais jovens. A leitura, no entanto, revela que a obra é coerente dentro do que se propõe, se considerarmos, mais que o seu recorte, a sua costura.

Os textos estão dispostos em quatorze capítulos, agrupados por afinidade temática, como “Lições de partir”, “Lançar mundos no mundo”, “Eu vos incito a lutardes” e “Todo o amor que houver nessa vida”. Daí o tom agradável da leitura, que promove um sentido de felicidade que muitas vezes é afastado da poesia por conta de auto-referências e outros hermetismos acessíveis ao gueto dos próprios poetas. O senso comum, aliás, não deixa de atribuir ao poema a representação romântica de um tísico lamurioso, o que não condiz com a variedade do que se produz atualmente.

Isso não significa, no entanto, que a coletânea tenha lições utilitaristas. Como o próprio Eucanaã explica na apresentação, o livro é uma espécie de auto-ajuda ao contrário. Busca não o equilíbrio e regulação da vida por meio de receitas – que constituem eles mesmos um tipo de monotonia -, mas o pensamento irrequieto fornecido pela fruição poética. Se entendermos a monotonia como aquilo de apenas um tom, repetido e destituído de novidades, a seqüência de poemas gera um tipo inelutável de arrebatamento. Mesmo porque não há um nivelamento dos textos de modo a produzir uma leitura fácil ou difícil. Prevalece a surpresa.

Durante o festival de poesia Folia das Falas, realizado recentemente em Florianópolis, uma pergunta da platéia a Antônio Cícero iniciou um pequeno debate acerca das semelhanças e diferenças entre o processo de criação para poemas ou letras de música. O poeta respondeu com a clareza semelhante aos seus versos que, embora os modos de produção sejam diferentes, há certas letras que podem se sustentar na leitura, da mesma forma que alguns poemas podem se transformar em algo aprazível quando musicados. De fato, é bom lembrar que o refinamento e a diversidade da música brasileira a transforma num eficiente canal de transmissão dessa vertente poética. Há quem se volte contra essa possibilidade de leitura, ignorando que letras de música circulam bastante pelo ambiente impresso, por exemplo na prática da reescritura nas agendas e blogs dos adolescentes.

Essa, talvez, seja a maior virtude de “Veneno antimonotonia”: permitir uma aproximação agradável da poesia escrita para o público que está mais acostumado em ouvir música. Ainda mais que em nenhuma rádio, hoje, é possível ouvir Bandeira nos aconselhando, como faz na primeira estrofe do poema “À sombra das araucárias”: “Não aprofundes o teu tédio./ Não te entregues à mágoa vã./ O próprio tempo é o bom remédio:/ bebe a delícia da manhã.”

Os segredos da ficção: um guia da arte de escrever narrativas – Raimundo Carrero

É comum que boa parte dos leitores, ao se deparar com um belo texto literário, pense que ele surgiu num momento de rara epifania, no qual um lampejo irrompeu do mundo imaterial sobre a mente de um ser iluminado, o escritor. Este, eivado pelo toque da Musa, derramaria as palavras sobre o papel de maneira precisa, tomado por um estado de entusiasmo e inspiração profunda.

Essa impressão pode – e deve – cair por terra tão logo esses mesmos leitores, interessados em saber como nascem as narrativas, se deparem com “Os segredos da ficção”, livro recém lançado pelo escritor pernambucano Raimundo Carrero. Na própria capa da obra, elaborada por Bruno Porto, misturam-se rabiscos, rasuras, idéias modificadas em busca de um formato melhor para serem apresentadas. Tal sensação de esforço contínuo é recorrente em todo o guia, conferindo ao título, inclusive, um aspecto irônico, haja vista que não há segredos na criação narrativa, e sim um conjunto de empenho, domínio de técnica e disciplina.

Raimundo Carrero tem lastro suficiente para apresentar os caminhos da construção literária a qualquer aspirante a escritor. Venceu os Prêmios APCA e Machado de Assis em 1999 com o romance “Somos pedras que se consomem” e o Jabuti em 2000 com “As sombrias ruínas da alma”. Além de ter sido escrito por um prosador consagrado, o que confere legitimidade ao guia é o fato de o seu autor vir ministrando oficinas literárias desde 1988. Assim, “Os segredos da ficção” é também o resultado de muitos anos de trabalho de leitura e escrita com autores iniciantes, o que lhe assegura refinamento metodológico e uma consistente base prática.

O autor de “Ao redor do escorpião… Uma tarântula?” dividiu o livro em três partes: “A voz narrativa”, em que são definidas minuciosamente as funções de autor, narrador e personagem, bem como o modo correto de serem utilizados recursos de escrita básicos de maneira coesa e coerente com a história contada; o segundo, “O processo criador”, é voltado para a quebra do mito da inspiração e da obra literária como algo construído a partir de fórmulas pré-fabricadas, em que pesem os recursos de intuição, técnica, pulsação narrativa e organização; e no que seria o capítulo principal, “A construção do personagem”, Carrero esmiúça todas as facetas desse elemento, em torno do qual toda a narrativa se desenvolve. “Precisamos compreender que o problema central da ficção é o personagem”, afirma, contrapondo essa perspectiva com outra linha segundo a qual as narrativas literárias são prioritariamente espaços para experiências de linguagem. De fato, ao se observar a narrativa literária na perspectiva do autor, o personagem adquire função primordial, cuja gênese – incluindo desde as características do nome até seus atributos físicos – já traz consigo a essência do que será contado.

Livros como “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, “Essa Terra”, de Antônio Torres ou mesmo obras do próprio Carrero são modelos a partir dos quais são estudadas as técnicas de disposição de diálogos, uso de pontuação, elementos gramaticais e todos os demais recursos que devem ser manejados de forma hábil na escrita. De forma análoga ao que fez Autran Dourado em “Uma poética de romance: matéria de carpintaria”, pode ser desenhada uma espécie de planta baixa de um livro, em que a arquitetura literária fica à disposição para ser manipulada pelo leitor-escritor.

“Os segredos da ficção” surge como oportuna ferramenta de reflexão e prática literárias, num momento marcado pela pluralidade temático-formal e relativa facilidade em termos de veiculação do que tem sido produzido. Nesse contexto, a preocupação com um método de criação literária e a leitura dos mestres é uma demanda bastante necessária. Inclusive porque, erroneamente, alguns novos autores apregoam uma espécie de auto-suficiência literária, ou seja, bastam-se como fonte natural e original de histórias e freqüentemente se declaram inventores da roda e das vanguardas, caminho pouco recomendável para quem está aprendendo, quando humildade, paciência e trabalho são fundamentais.

Daí a importância de se ler a excelente bibliografia comentada no fim da última parte, o que permite ao leitor conferir de forma mais aprofundada os problemas levantados ao longo do guia.

Com todo esse conteúdo, “Os segredos da ficção” não é um livro de receitas. Antes, aponta caminhos com base na experiência. A qualidade do resultado ficará por conta da vontade e persistência de quem o ler.

Entrevista com Raimundo Carrero

Raimundo Carrero foi convidado para ministrar uma oficina literária na Flip. Os mais de 50 alunos foram selecionados pela equipe do blog Paralelos.org, especializado em divulgar novos escritores.

Fica claro, logo no início de “Os segredos da ficção”, que a leitura analítica e criteriosa dos mestres, somada ao trabalho árduo, são o caminho mais eficaz para a criação literária. Como os seus alunos recebem essa idéia?

Sempre que realizo oficinas, faço leituras analíticas de vários textos, como “Abril Despedaçado”, de Ismail Kadaré, “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo e “Ana Não”, do Agostinho Gómez Arcos. Procuramos ler para interpretar cada parágrafo, palavra, cena, diálogo, sentir que essas peças não foram colocadas ali por acaso. Essa análise de pianista, criteriosa e lenta apaixona os alunos. Buscamos fazer esse mesmo tipo de leitura nos textos produzidos nas oficinas.

Muitas pessoas acham que a literatura é produto de uma inspiração profunda, quase divina. De onde vem essa concepção?

Vem de Platão. Somos saudosistas de um mundo paradisíaco perdido. Após a descoberta da psicanálise, não há porque desconhecer e explorar o inconsciente. Assim, sabe-se perfeitamente que a criação, mais que uma libertação, é um duelo entre o homem e a realidade, produzido na seqüência pacificação/interação.

Seu livro situa alguns elementos fundamentais da narrativa (tempo, espaço e enredo) girando em torno do personagem. Por quê?

Porque o escritor não tem estilo, quem tem estilo é o personagem.

Universidades e outras instituições vêm cada vez mais oferecendo cursos específicos para a formação do escritor. Qual a importância das oficinas literárias para os escritores potenciais?

É importante que eles descubram que são escritores. E que também não existe essa distância extraordinária entre seres mitológicos inspirados por musas e aqueles mais humildes que apenas se propõem a estudar e escrever literatura.

E para o autor que ministra essas oficinas?

Para mim, a oficina é uma grande oportunidade para exercitar e revelar aquilo que venho aprendendo na solidão e no silêncio, ao longo de muitos anos de trabalho com a palavra.

 

Caligrafias – Adriana Lisboa

Adriana Lisboa é uma das mais proeminentes narradoras brasileiras dos nossos dias. Com apenas três livros publicados, dentre os quais o primoroso “Sinfonia em branco” (não por acaso vencedor do Prêmio José Saramago em 2003 como melhor romance escrito em língua portuguesa), a escritora vem se firmando como um nome consistente e respeitado no vasto mundo literário contemporâneo.

O recém-lançado “Caligrafias” reúne pequenas narrativas produzidas entre 1996 e 2004. Alguns desses textos, com o mesmo título, foram inseridos na coletânea “25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”, organizada por Luiz Ruffato. Se ali a sucessão de textos curtos pareceu diluída no emaranhado da diversidade formal, a oportunidade de lê-los numa obra autônoma lhes dá uma outra perspectiva literária.

Inicialmente pensados como exercícios de escrita, os textos passaram por uma seleção e passaram por tratamento gráfico simples e eficaz, que se engrandece com os desenhos do artista plástico Gianguido Bonfanti. Seus desenhos sugerem uma movimentação de corpos, conferindo ao livro uma dinâmica à parte, embora a maioria esteja atrelada a um dos fragmentos.

Os pequenos textos partem de situações que à primeira vista seriam banais. Uma viagem de ônibus, um sonho antigo, um cachorro atropelado ou mesmo um menino pedindo esmola são o mote dos retratos delicados e de singular qualidade descritiva, como no intitulado “Quintal”: “Cinco minutos de chuva. Ninguém tirou as roupas do varal. (…) O sol voltou a brilhar e as palmeiras projetam sombras aveludadas sobre a grama brilhante. O muro está sujo de terra na parte mais baixa. Uma pilha de tijolos e três estacas de madeira onde crescem os pepinos. As colchas brancas cintilam, no varal, e o verão nasce na voz das cigarras.”

O caráter descritivo e condensado do livro, em que a força imagética se mescla à sutileza dos instantes, possibilita ao leitor vislumbrar uma espécie de hai-kais narrativos, em cujo processo de absorção se somam as propriedades dinâmicas dos desenhos.

Uma das maiores características de Adriana Lisboa obviamente não está presente em “Caligrafias” (a refinada capacidade – infelizmente não tão comum na produção atual – de costurar uma história e gerar unidade narrativa). É uma obra assumidamente menor que os romances, pois consiste naquilo que o meio acadêmico vem estudando como rastros ou arestas que os autores vão deixando paralelos à sua obra, sendo que, na maior parte dos casos, a publicação é póstuma, muitas vezes contrariando a vontade deixada pelo autor. A diferença é que aqui houve uma intenção de reunir esses elementos e apresentá-los num conjunto.

Se tivessem sido escritos em blogs, os textos desse belo livro representariam a transposição entre os diferentes suportes (Internet e livro), seguindo o caminho já quase natural de muitos autores. A proposta de Adriana Lisboa, em viés similar, revela que mesmo os exercícios do escritor podem render bons momentos de leitura quando os fragmentos de textos são organizados de maneira coesa.

 

Apresentações – Millôr Fernandes

Millôr Fernandes, antes de tudo, dispensa apresentações. Esguio a quaisquer rótulos ou definições que se lhe imponham – desde o equívoco no seu registro oficial, quando, em vez de escrever Milton, o tabelião fez o traço do “t” sobre o “o” e não concluiu o “r” –, Millôr vem contribuindo há mais de sessenta anos, ininterruptamente, para a disseminação daquilo que, segundo ele, constitui um dos traços mais importantes da sua obra: a vitalidade. Essa característica é notada também na maneira como o guru aprecia a arte e os artistas que o circundam.

O livro “Apresentações”, não tão por acaso lançado no período em que o autor completa 80 anos, vem oferecer a perspectiva sobre cerca de 70 personalidades para quem ele fez textos introdutórios, indicações ou apreciações críticas ao longo dos anos.

Uma vez que Millôr atua com extrema desenvoltura nas mais variadas manifestações artísticas – das quais se destacam poesia, teatro, crônica, tradução, desenho e pintura –, suas opiniões sobre a produção alheia são carregadas de um olhar empático, tal como ocorre na apresentação de um grupo de humoristas cariocas: “Parecerá ao leigo (nome com que os educados tratam o imbecil) que é muita ambição para pouca exposição. Mas cada desenho aqui exposto corresponde a dez mil ações de cada um de nós, pois o que menos fazemos, nós, os humoristas, é humorismo, o que menos praticamos, nós, os desenhistas, é desenhismo.”

Embora o autor trate de si (há algumas apresentações de suas próprias obras, como ocorre no rico prefácio da peça “Um elefante no caos”) e dos seus, o conjunto de textos não consiste num apanhado de apadrinhamentos, e sim apreciações feitas com precisão crítica. Esse olhar se mostra sempre agudo e amplo, a partir do qual, muitas vezes, Millôr aproveita para lançar mão da sua iconoclastia incomparável, questionando o establishment.

O humor sem plumas de Millôr dá o tom de “Apresentações”, conferindo ao texto uma boa carga de ludicidade. Considerando que muitos dos apresentados são humoristas da palavra e/ou do traço, a temática sobressai e revela, em vários momentos, as definições millorianas sobre a atividade, principalmente para negar uma visão banalizadora que o humor possa receber. No texto de apresentação do livro “As 13 pragas do século XX”, do hoje (infelizmente) pouco lido JAAB, Millôr afirma que humor “não é ser engraçadinho, não é ser a vida da festa, o contador bem-sucedido de piadas em cadeia (ocasionalmente isso vale, mas só ocasionalmente); humor é, sobretudo, mau humor.” O fato de o humor ser mostrado como “a quintessência da seriedade” em vez de uma promoção da campanha do “sorria sempre” assegura, assim, o seu papel ideológico e profissional.

A generosidade do autor tem sido retribuída pelo público a quem a obra dos apresentados se destina, visto que Millôr não perde tempo com quem julga medíocre (a não que seja um medíocre célebre, que pode se converter em objeto do seu humor sardônico). Numa carta a Paulo Francis, afirma que “a gente, queira ou não, vai deixando pedaços com os amigos, pedaços que nos ligam e interligam.” Ao fim de “Apresentações”, é Francis quem apresenta Millôr, retribuindo na mesma moeda o que poderia ser uma resposta de todos os demais citados no livro: “Não há ninguém entre nossos profissionais que não reconheça em Millôr uma constância de qualidade quase sobre-humana. (…) Melhora, como os melhores vinhos, com o tempo. Não decai ou tem lapsos. É tinhoso e furioso. Já me irritou quando discordamos à latência homicida. Sempre o admirei e admiro.”

 

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