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Fiz um trocadilho e me lembrei de você

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Nas três últimas semanas, fiz aqui uma sequência de crônicas a respeito da importância do humor em geral e dos trocadilhos para a vida em sociedade. É, de fato, um assunto sério. Ou, pelo menos, que se coloca como oposto ao sério, e talvez daí se torne relevante. Essa volta ao pensamento teórico e prático do trocadilho me fez revisitar o assunto. E por isso quero dedicar esta crônica aos que não resistem em trocadilhar.

Não adianta tentar mudar os fatos. Quem faz trocadilhos possui um tipo de compulsão que se torna uma característica indelével. Naturalmente, não devemos tratar todos os trocadilhistas como indivíduos que sofrem de um transtorno. Existe uma patologia chamada de witzelsucht, causada por um problema neurológico, em que a pessoa não consegue parar de falar piadas ruins durante um tempão. Mas isso é exceção, não a regra. Os adeptos do trocadilho são em geral pessoas sociáveis, trazem alegria para as conversas e rejuvenescem os grupos de que fazem parte. São moderados e não atiram pra matar.

De vez em quando reencontro pessoas de empregos antigos, faculdade ou vida literária. E em dado momento da conversa alguém sempre diz “ah, Henrique, nesses dias fiz um trocadilho e me lembrei de você”. Há um tempo eu achava isso esquisito: pô, a gente estuda e trabalha pacas, escreve livros e a maior referência que deixamos para trás entre os nossos camaradas são os trocadilhos? Será esse o legado maldito de quem apenas é adepto do calembur suave, só porque não hesita em juntar lé com cré?

Pensando bem acho que já seria sim uma boa. Veja só. Deveria haver grupos de autoajuda para pessoas que falam piadas, deixam a seriedade pra lá e mergulham na prática de falar todo tipo de bobagem sobre quaisquer assuntos, sem superego ou gueriguéri. Pensando bem, esse lugar já existe e se chama bar. Então se as pessoas se lembram de nós por conta dos trocadilhos, tá de muito bom tamanho.

Porque seria estranho mesmo se dissessem “fiz uma planilha de custos e me lembrei de você”.

“Fiz um power point e me lembrei de você. Fritei um ovo e me lembrei de você. Ofendi Fulano e me lembrei de você.”

Daí que se torne relevante a presença e função social de pelo menos um trocadilhista em cada. A realidade tem sido chapada e denotativa demais, inflexível demais. Então você aí, quando fizer um daqueles bem infames, e do seu lado soltarem um daqueles “não, não acredito que você disse isso”, não esmoreça. Mantenha-se firme na sua capacidade de troça e siga em frente, pois essa é, na verdade, uma crítica positiva, porque o trocadilho, cachaça que é, precisa descer queimando.

PS: Minha intenção como romancista não era de produzir essa frase, mas é legal quando me dizem com olhar sacana “Não li seu livro ainda, mas ele é o próximo da fila” Ba dum tss.

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Assunto crônica

Ba dum tss – Defesa do trocadilho (parte 3)

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(ilustra FP Rodrigues)

Previously…

Nas duas últimas semanas, tratei aqui nestas crônicas da necessidade e importância (ou desimportância) do humor na vida cotidiana, bem como a prática dos trocadilhos como potenciais pílulas de transgressão ao costume e a ideias sedimentadas. Confesso à leitora que, ao puxar um assunto que me é tão importante, uma vez que me dediquei a ele em pesquisas durante tantos anos, tive certo receio de escorregar para o acadêmico chato, o rebarbativo do argumento, o adiposo das ideias. O Vida Breve não é pra isso.

Aliás, para quem não sabe, o título deste site de crônicas não é inspirado na música do Cazuza, pelo menos primeiramente. A referência é um aforismo atribuído ao médico e arquiteto grego Hipócrates, mas que nos chegou via latim: vita brevis, ars longa. A vida é breve, a arte é longa. E a crônica é, sem pretensão, como quem não quer nada, um lance voltado para a primeira parte. E não por acaso a crônica, sendo também um texto breve, é um espaço muito adequado para o riso, que é também, pela sua natureza, rápido e rasteiro.

O tempo, matéria de chrónos, é também o material do trocadilho, do humor em geral. O pensamento ágil, comprimido, que dá saltos abruptos de sentido e de entendimento da realidade, otiming, são típicos do humor.

Por isso é que, a meu ver, é possível defender até uma poética do trocadilho. Sei que a leitora, assim como muitas pessoas, tem a reação inicial de torcer o nariz diante de uma piada involuntária e inesperada, especialmente se ela surge no meio de um contexto “sério” – e coloquem aspas nesse termo. “Oh, não, lá vem o mané dos trocadilhos de novo”, reagem rapidamente com a mão sobre o fígado. Mal sabem que essa forma de resposta indica o sucesso de uma zombaria, que o recado foi dado, porque internamente houve, em meio àquela situação cheia de ideias denotativas e rígidas, um deslocamento morfológico, sintático ou, melhor ainda, semântico. A reação ao se ouvir um trocadilho é uma pequena vitória do humor sobre a ditadura da seriedade.

Há uns tempos decidi fazer alguns experimentos no dia a dia. A primeira foi publicar um livro para crianças só com trocadilhos. Nasceu o “Alho por alho, dente por dente”, escrito com o camarada André Moura. Trabalhávamos juntos na universidade e, entre os e-mails ordinários, trocávamos poemas com piadas rimadas, como essa do título. Quando visito escolas onde o livro é trabalhado, comprovo uma tese: as crianças adoram trocadilhos (assim como gostam de poesia) e os adultos, com algum constrangimento, tentam esconder que também curtem. Então parti para observar mais acuradamente a reação dos adultos diante do fenômeno.

Recentemente, criei uma fan page chamada Trocadilhos de Quinta. Isso porque notei que, em conversas de Facebook com meu amigo Leo Cunha, que também escreve livros infantis e também não resiste a uma transgressão pelo riso, iniciávamos um tipo de peleja. Todas as quintas postamos uma foto ou notícia geradora de duplos, triplos ou quádruplos sentidos, abrindo os comentários para que os leitores façam seus trocadilhos, que muitas vezes passam dos cem num mesmo dia. Acredito que haja uma demanda reprimida pelo riso entre todos os adultos, talvez uma pequena revolta contra a estupidez do mundo.

Lembro de uma citação do filósofo francês Henri Bergson, que escreveu “O riso”, um dos principais livros sobre o assunto: numa sociedade só de inteligências puras talvez não houvesse pessoas chorando, mas talvez rindo. Acredito que, quem oprime o riso, situando-o num lugar inferior, na verdade está se borrando de medo de ver a sua estrutura ruir com a fragilidade de um castelo de areia.

Para pagar o feijão com arroz, trabalho numa empresa grande, bato ponto em horário comercial, lido com papéis a todo tipo de seriedade, ainda que meu setor específico seja relacionado a ações culturais. Assim como os demais colegas, tento manter algum equilíbrio entre lidar com a densa estrutura administrativa que nos sustenta e o conteúdo transgressor e, muitas vezes, corrosivo dos projetos. Por esses dias, numa reunião que estava pesada demais, mencionaram uma pessoa de outro setor, cujo sobrenome, Singer, me fez perguntar se ela costurava propostas da instituição, ou se havia cantado a pedra para determinado fato. Já conhecia a pessoa em questão, muito simpática, aliás, mas não resisti em fazer o comentário jocoso. Após algumas risadas, voltamos para a reunião, um tanto mais leves.

E assim encerro essa sequência de crônicas sobre a importância do trocadilho na nossa sociedade. O humor é uma arma que não atira para matar, mas corrói pelas bordas. Ao permitir que as cucas se tornem mais flexíveis para as ideias e coisas, pode ainda ter um grande papel nesses tempos tão estranhos, como teve em tantos momentos ao longo da história.

Vita brevis, humor aeternum.

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Assunto crônica

Ba dum tss – Defesa do Trocadilho – parte 1

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Ilustra: FP Rodrigues

Há pessoas que conseguem manter absoluto controle diante de uma situação social em que ideias e palavras coincidem de forma abrupta e geram aquilo que popularmente se chama de trocadilho. Guardam para si, riem para dentro num tipo de subriso, mudam de assunto levemente constrangidas, disfarçam o pensamento livre e lúdico, tudo a fim de voltar à plena normalidade do uso da língua. Que sérias essas pessoas, hein?

Já tentei por diversas vezes, mas não me enquadro nesse grupo por nada. É que, por algum motivo que não entendo bem, parece que desde cedo sou perseguido por trocadilhos. Não quero criar uma teoria conspiratória em que pessoas ou corporações criariam secretamente situações geradoras de duplos e triplos sentidos apenas para meu gáudio. Pelo contrário, o que me deixa espantado é a sensação de que toda a realidade está imersa num grande oceano de sentidos que se trombam a todo tempo. E o que me incomoda é a hipocrisia geral em ignorar esse caldo, nessas convenções sociais em que a seriedade total é aplicada como sinônimo de maturidade e ordenamento. Quando eu era mais novo isso poderia até parecer uma regra, mas olhando agora, de dentro, concluo que a seriedade não me convence.

Acredito que a leitora deve concordar comigo enquanto lê esta crônica. Sim, a liberdade criativa é muito mais interessante que a sisudez corporativa. O poético muito mais bacaninha no dia-a-dia do que o prosaico. O extraordinário do pensamento muito mais palatável que o ordinário-marche! Mas nem é disso ainda que estou falando. Penso mesmo é na aplicação direta da transgressão humorística do mundo real, fora da crônica. Sim, aí no seu trato com a família, com amigos e semiamigos, na sua reunião chata de trabalho, em que os colegas fazem de tudo para parecerem mais produtivos e inteligentes com um monte de jargões corporativos do momento.

Aliás, fica lançado o desafio: sair de uma reunião ainda neste ano, pelo menos em empresas que trabalham na área de Humanidades, em que não sejam proferidos os termos protagonismo, territorialidade, empreendedorismo, inovação e, como não poderia ficar de fora, empoderamento. Tudo agora está empoderado, até o cafezinho. E repare que muitas vezes essas palavras são ditas, com voz impostada e sobrancelha franzida para agradar superiores chefes e impressionar colegas, apenas porque estão na moda, assim como os anglicismos até há não muito tempo – ou ainda tem gente que estarta o feed-back do business do negócio?

(E a quebra de paradigmas? Quando é que vão quebrar o paradigma de tanto se falar quebra de paradigma e assumir de vez que estão todos estacionados num mesmo sintagma?)

Certa vez estava numa reunião dessas que, se espremidas, renderiam menos que um limão velho. O termo solução era falado a cada dúzia de palavras, acredito que para provar a resolução de um problema que, na verdade, nem existia, mas que dava terno-e-gravata a quem falava. Depois de um tempo ouvindo a mesma coisa, acabei me distraindo olhando um ponto fixo, até que distraído disse, meio pensando alto, que solução é um soluço grande, e a reunião teve que parar porque a ideia do sujeito ficou meio ridicularizada – ou foi revelado que tudo ali não passava de uma grande papagaiada.

Aristóteles ensinava boas maneiras ao seu filho Nicômaco, num livro que sobreviveu aos nossos dias. Uma delas foi “o gracejo é uma espécie de insulto”. O filósofo orientava que o excesso de riso poderia gerar um bufão, de maneira que era preciso dosar essas desconstruções no dia a dia. Mas e quando a sociedade se torna tão enrijecida a ponto de a seriedade se tornar um tijolo opressor com uma camada de glacê colorido por cima?

E o pior, como o humor pode voltar a ter um caráter corrosivo novamente, quando se tornou um recurso banal, incapaz de aplicar acidez no seu objeto, tornando-se até, via fagocitação de artistas do riso a grandes grupos de entretenimento, um mero ingrediente do glacê?

A leitora pode estranhar a relação da ideia do início da crônica com essa. O que fazer trocadilhos tem a ver com a percepção crítica – e diria até política – do mundo? Tudo, minha cara.

Os que fazem trocadilhos (ou calembur ou paronomásia, se quiser termos mais pomposos) são indivíduos que não se acostumam, não embarcam cegamente em ideias que lhes tacam como verdades corretinhas. Estamos vivendo uns tempos estranhos, de ditaduras invisíveis, pensamentos retrógrados que surgem como mortos-vivos, contrabalançados por outros aparentemente construtivos, mas que muitas vezes criam suas próprias cercas aramadas com elementos arriscados, como o politicamente correto. Em nenhum desses polos o humor pode entrar. E isso é perigoso.

Daí a importância do humor mais simples, o trocadilho basicão, morfológico e inconvenientemente transgressor. Por trás de um simples jogo de palavras há pequenos saltos de sentidos, hiatos onde eclode uma micro-revolução da linguagem, impedindo que o pensamento cotidiano vire aquele bloco de tijolo: mostrando a nudez do rei, o trocadilho revela a dureza escondida sob o glacê docinho que estão nos vendendo ou empurrando goela abaixo.

(Continua semana que vem, pois esse papo rende…)

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Carta à leitora marginal

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Ilustra: FP Rodrigues

Prezada leitora,

Estive por esses dias em Curitiba, essa cidade tão bonita e literária. Acho que é, hoje, a melhor capital do país para a antiga prática da flânerie. Flânerie era essa coisa de andar a pé sem muito compromisso, colhendo elementos da urbanidade que poderiam se converter até em poemas e crônicas. Sim, hoje também há muitas pessoas querendo colher pokémons, mas não sei se a metáfora funciona.

Sei que você vai dizer que elogio a cidade porque não moro nela. Que bastaria um mês vivendo aí para que fosse assolado pelo tédio, as temperaturas que variam abruptamente ao longo do dia e a violência que não para de aumentar, fora os engarrafamentos. Digo algo parecido com quem vem ao Rio de Janeiro e se encanta com a cidade. Agora mesmo nas Olimpíadas propus o clássico “vamos trocar então” para várias pessoas residentes em locais menos caóticos.

Mas é que Curitiba tem um tipo de mistério aberto, um claro enigma que nos (ou pelo menos me) convida para desbravar a cidade. Entre uma ida a restaurantes e outros pontos turísticos, encontramos os irresistíveis sebos de rua. Num deles fiz umas compras legais a preços camaradas. Entre os quais aquela primeira edição do “Quase Memória”, do Carlos Heitor Cony. Sim, aquela que tem um balão na capa. E a memória me levou de volta ao ano em que li o livro, 1997, quando estudava Letras de manhã e trabalhava numa locadora – segurando o exemplar, quase consegui ver uma fita de VHS não rebobinada. O Seu Armando, dono da locadora, era um grande e afiado leitor. Fazíamos nossos debates literários e esse livro rendeu um papo que me acompanhou para sempre.

Mas os livros dos sebos também têm suas memórias, e nesse tem uma dedicatória: “Tão banal, tão ele, tão grande. A meu pai, uma eterna criança.” É difícil não se comover. E também não imaginar todas as histórias ali por trás, que casam inclusive com o conteúdo do romance. Meus literocomparsas já exploraram essas pegadas dos livros: o Marcelo Moutinho fez um conto só com dedicatórias, e o Flávio Izhaki usou esse mote de anotações em livro, inclusive comprado num sebo de Curitiba, para seu primeiro romance, “De cabeça baixa”.

Outra grande surpresa foi encontrar um exemplar do meu primeiro livro, “A musa diluída”, cheio das suas anotações. Ele foi lançado há quase dez anos, e não sei em que período passou pela sua vida. Mas saiba que você deixou rastros nos poemas, sublinhando, riscando e completando com outras ideias. E com o seu texto me parece agora que se trata de outro livro, mais completo – ou menos incompleto – após a uma boa leitura.

“O que é poesia? Poesia é susto. O que faz um poeta? Ficar no que se é! Sobre a desesperança. A vida além do verso. O poeta é uma imitação de si. A noite é branca. Destino = distração”, vai escrevendo nas margens, comentando para si mesma. Acho que você notou que é um livro cheio de alusões líquidas, e vai nadando verso a verso, braçada a braçada, mergulho a mergulho. Mas quem sou eu para saber das suas águas, e o que se esconde na profundidade desses redemoinhos?

Como os envolveu a caneta e fez um comentário ao lado, você parece ter gostado muito do verso “Uso os braços para escrever e para dar adeus”, e mais à frente “Eu canto os meus contemporâneos / Solitários peterpânicos”. Terá se identificado por conta de um fim de namoro, a perda de um familiar, o isolamento numa noite de domingo em pleno inverno curitibano? Ou apenas encontrou relação com algo com que trabalha ou estuda, apontando para essas fragmentações e rupturas teóricas da tal pós-modernidade? Ou apenas passava o tempo enquanto esperava um ônibus desses de tubo?

Antes de ter seus livros publicados, muitos autores pensam que, após essa conquista, irão receber muitas coisas materiais e imateriais, como prêmios, convites para eventos, reconhecimento público ou de crítica e até, veja só, dinheiro. Depois de um tempo, e te digo como esses dez anos foram importantes para que eu conclua isso, parece que é mais o contrário.

Em livro, livramo-nos também de algo que nos inquiete e às vezes consome, e nesse momento as ideias guardadas nas páginas fogem a qualquer suposto controle que tínhamos sobre elas – daí a relativa desimportância de críticas, sejam positivas ou negativas. O importante é estamos livres para as novas distâncias e proximidades, que por sua vez podem se transformar em novas inquietações e livros. E assim segue o barco.

Por isso te agradeço, leitora. Talvez sem saber, seu texto me espelhou novos sentidos para um sentimento que é, em tempo, vida e poesia, bem mais que memória.

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Assunto crônica

Ecos da Bienal do Livro

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Ilustra: FP Rodrigues

Semana passada estive por quase uma semana acompanhando a Bienal do Livro de São Paulo, um dos maiores eventos da área aqui na América Latina. Não sei se por bairrismo ou por outro motivo de ordem pessoal, ainda gosto mais da Bienal do Rio de Janeiro – caos por caos, prefiro o da minha cidade. Mas no geral são eventos muito parecidos, caracterizados, sobretudo, pelo volume imenso de público. E onde tem muita gente reunida existe coisa boa pra se ouvir. Se na semana passada falei do agradável papo que tive com outros passageiros de Uber, agora vale retratar uns pontos que pesquei lá dentro do pavilhão do Anhembi, ou a caminho de lá. Mas já alerto que são, em sua maioria, desimportâncias.

Ouço ecos da multidão de adolescentes que, não é de hoje, mas cada vez mais, ocupa esse tipo de evento. Há pouco mais de duas décadas, os adultos, assustados e alarmistas, diziam que a tal internet ia acabar com os livros, ainda mais com aqueles adolescentes (eu incluso) que não paravam de jogar videogames. Taí, coroas (eu incluso ou a caminho de), a molecada que nasceu de lá pra cá está lendo mais que as anteriores. Os adultos (eu incluso?) é que não têm mais tempo de ler, pois os raros tempos livres dessa vida corrida são ocupados pelas séries de Netflix e, claro, os videogames.

Mas também ouço ecos de grupos de adolescentes que evocavam grupos de outras escolas, e em uníssono milhares gritavam sua palavra de ordem: BIRLLL!

Ouço os ecos dos amigos paulistas que não consegui rever, seja fora do horário da Bienal num chope, seja lá dentro por eu não estar no momento, nesses desencontros tão comuns para uma metrópole como Sampa.

Ouço ecos dos que consegui encontrar, seja em contatos profissionais ou mesmo para atualizações sem compromisso de assuntos diversificados – vulto jogar conversa fora. Aliás, como se come e se bebe bem em São Paulo.

Ouço ecos dos jovens, sempre eles, gritando porque uma youtuber famosa iria aparecer lá, mesmo não tendo muito o que dizer – ou escrever, porque os livros dela têm a consistência de biscoitos de polvilho. E ouço também uma uma senhora, mãe de algum deles, que voltava daquela comoção coletiva, nos olhou e disse “só Jesus pra entender”. E na hora me perguntei se, caso reencarnasse hoje, ele viria como um youtuber. Ou já veio?

Ouço ecos, ainda, de leitores fãs que berravam emocionados ao lado da sala onde eu falava sobre prêmios literários com curadores de projetos sérios e importantes, cujos livros descobertos ou agraciados, infelizmente, não geram essa gritaria. Como fazer essa ponte entre os dois mundos?, perguntei a todos nós lá, sabendo que para isso não há resposta fácil.

E ouço o eco da felicidade por compartilhar uma mesa com a professora Marisa Lajolo. Como estudante de Letras, li muitos livros dela, que depois da sessão, no almoço, apelidei metonimicamente de “minha bibliografia”. Ao me despedir, ela disse “vem cá dar um beijo na Bibliografia”.

Sim, ouço eco de um virundum ouvido por um camarada que limpava o banheiro enquanto cantava: “Eh, meu amigo canibal” e não parecia saber que era Charlie Brown. Achei benito, digo, bonito aquele calembur involuntário dele, eu que guardo trocadilhos como quem captura pokémons.

E por fim ainda ouço o eco de uns fogos bizarros que explodiram nos céus quando a presidente sofreu impeachment. Esses ainda vão ecoar por um bom tempo, zumbindo aguda e dolorosamente nos tímpanos de todos nós.

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No uber com leitores

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Ontem saí da Bienal do Livro de São Paulo, depois de participar de ótimo debate sobre a importância dos prêmios literários, e peguei um Uber daquele compartilhado, que sai mais barato.

Sou muito fã desse serviço (e adianto à leitora que esta não é uma crônica patrocinada!), e acredito que, pela praticidade e flexibilidade, possa ser o futuro dos táxis tal como os conhecemos. Mesmo porque fiquei abismado ao saber que uma autonomia de táxi custa 100 mil pratas no Rio de Janeiro. Isso me lembra um pouco a época em que uma linha de telefone fixo, serviço que na minha casa chegou apenas no ano 2000, custava o preço de um carro popular.

Mas sou fã também porque os motoristas em geral me parecem pessoas comuns, talvez por estarem começando a trabalhar na área, muitas vezes dispostas a trocar ideias com os clientes. Pode ser que no futuro fiquem como alguns taxistas da velha guarda, sábios das generalidades que nos empurram ouvido adentro suas certezas sobre tudo e preferências musicais das mais diversificadas.

Não me esqueço da outra vez em que, voltando de um evento literário, um motorista de Uber quis saber sobre o meu trabalho e quis me comprar um livro autografado para a filha. E ontem, para minha surpresa, o Uber pool foi partilhado com duas pessoas muito interessadas em leitura.

O primeiro era o Vicente, estudante de medicina de 21 anos, que voltava de uma rara balada, pois não é de sair muito para essas coisas. O rapaz tímido gosta muito de ler as aventuras do Percy Jackson.

Depois entrou a Ivana. Não perguntei com o que ela trabalha mas me pareceu muito esperta sobre todos os assuntos – jornalista? – e não sei a idade porque seria uma indelicadeza perguntar. Mas pelo que vi na penumbra do carro devia ter os seus 50 anos. Sim, nosso motorista era o Fabio, que devia ter a minha idade – ou seja, seminovo.

A Ivana adora biografias e história. Leu todos os livros do Laurentino Gomes, mas não ainda os da Mary Del Piori e Lilia Schwarcz, que indiquei e ela anotou. Gosta de ler coisas que retratem a realidade, contando fatos que aconteceram, ou pelo menos supostamente, visto que toda escrita, literária ou não, possui escolhas e recortes que relativizam o dito.

A Ivana nos mostrou, toda orgulhosa, o seu leitor digital, onde cabem centenas de livros. Ela raramente compra os impressos, pesados e mais caros. Já o Vicente rebateu dizendo que já lê muita coisa em tela o tempo todo, seja em celular ou computador, e não imagina ler os livros do Percy Jackson em outra forma que não no papel. Comentei que o meu moleque de 14 anos, que passa boa parte do tempo no celular e nos games, acabou de ler “Os três mosqueteiros”, edição integral e impressa, e está num entusiasmo só para outros livros.

O Fabio tomou outro caminho porque uma festa de rua interditou o caminho indicado pelo Waze, e concordou com o Vicente, pois livro bom mesmo é o impresso. Ivana, pelo que percebi, se sentiu surpresa e moderna com a perspectiva do jovem. Acredito que todos estavam contemplados.

Por conta da corrida mais longa, o papo continuou e fiquei feliz por compartilhar espaço e tempo com três figuras tão interessantes. A Bienal do Livro segue, acaba do fim de semana e voltaremos à programação nornal, mas espero que nesses pequenos espaços de coletividade as trocas continuem. Na leitura de livro e de mundo, temos muita estrada ainda para percorrer.

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Pinóquio e a verdade relativa

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Com a crise da mídia impressa e o consequente fechamento de bancas de jornais que se recusassem a vender todo tipo de quinquilharia, um velho jornaleiro italiano, que atendia por Gepeto, decretou estado de calamidade pública, como está na moda. Mas como não recebeu nenhum auxílio financeiro do governo federal, o idoso se viu cada vez mais na penúria. Antes que morresse de fome, recorreu a um curso no Sebrae e aprendeu técnicas de marcenaria.

Começou vendendo miniaturas do Cristo Redentor para turistas, e como tivesse experiência em dar informações na banca de jornal a todo tipo de gente perdida, foi ganhando a simpatia da clientela e logo montou a lojinha. Mas o sucesso trouxe a solidão junto, e só então se deu conta de que gostaria de ter um filho. Gepeto gostava muito de crianças, mas não tinha paciência alguma com adultos. Adotar um moleque não pegaria bem para um velho solitário, então lhe restou criar um filho de madeira para conseguir a companhia infantil que tanto buscava. Como fez com restos de pinus, deu o nome de Pinóquio.

– Agora sim, regazzo, serás meu guri – disse com um tapa na cabeça do manequim.

Os clientes achavam estranho quando chegavam na loja e viam Gepeto falando com o boneco de madeira, que a muitos lembrava Chucky, o Brinquedo Assassino, ou aquele outro do Jogos Mortais – nunca o do Toy Story, pois a choldra puxa sempre para o mais pesado.

Enquanto todos pensavam que o pobre velho já estava caducando em esquizofrenia galopante, a loja foi visitada por um grupo de uma startup a quem Gepeto deu dicas turísticas meses antes. Ao reencontrarem o velho italiano e tomarem conhecimento do caso do boneco, ofereceram para Gepeto uma versão beta do novo sistema de inteligência artificial que vinham construindo. Adaptaram toda a parafernália e programas dentro do boneco de madeira e em pouco tempo Pinóquio andava, falava e aprendia com seu pai.

– Caso ainda é um modelo de teste, o nariz vai indicar qualquer eventual falha de software – alertou o gerente de produto, um jovem adulto pálido, com cara de quem sempre soltou pipa no ventilador.

Quando Gepeto iria perguntar mais detalhes sobre como resolver esses itens, o grupo saiu correndo para caçar pokémons nas cercanias, deixando-o só com o seu filho, ou aquilo que mais podia parecer com um.

E como Pinóquio agisse basicamente como um menino normal, foi para a escola, gostava de brincar de pega-varetas e com palitos de picolé como se fossem Playmobil, além de outras distrações temáticas. Sempre que amigos perguntavam se desejava ser um menino de verdade, respondia que não se considerava de mentira. E assim os deixava confusos e admirados.

– O que é ser um menino? Zumbis têm carne e osso, e são mais humanos do que eu? Quem somos nós para definirmos a natureza da alma? – perguntava cheio de metafísica.

Daí que o jovem amadeirado sacou que o lance era deixar as pessoas pensarem – ou, pelo menos, fazê-las pensar que estavam pensando. Em pouco tempo, Pinóquio já fazia pequenos vídeos motivacionais sobre diversidade, pertencimento, protagonismo, territorialidade e superação, angariando milhões de fãs nas redes sociais. Criou um canal no Youtube chamado Karadepaw, que se transformou em livro de autoajuda disputado por grandes editoras. Abandonou o pobre Gepeto, que, desconsolado, adotou um bonsai e passou a falar com plantas.

– Boneco não, sou um action figure empoderado! – bradava em programa de entrevista.

Celebridade, Pinóquio estava em todas: linha de cosméticos, roupas, brinquedos, games, desenho animado e utensílios variados. E como todos estavam hipnotizados por tanta papagaiada de márketim, ninguém nunca reparou que em tudo o Pinóquio sempre saía com um nariz de vantagem.

Moral: Se liga, mermão, que o cabo do machado é feito de madeira.

Moral 2: O Grilo Falante nesta história é você.

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Cinderela empoderada

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Reza a lenda que havia por estas plagas uma novinha chamada Cinderela. Filha de pai comerciante do tipo novo-rico, aqueles da burguesia emergente da Barra da Tijuca, a menina tinha de um tudo ao simples estalar dos dedos. Uma vez que o pai só se dedicava aos negócios e a mãe havia se mandado para a Europa com o personal trainer, restava à pobre menina rica destilar sua existência entre shoppings e baladas para moças de fino trato. Mesmo porque ficar em casa significava ter de aturar a madrasta e suas duas filhas. Se a primeira era uma madame daquelas feias por dentro e por fora, as outras não ficavam para trás, igualmente fracas de feição e destituídas de dotes físicos de encanto ou graça.

Até que um dia veio a crise (crise, que crise?, pergunta-se a leitora desavisada, a quem se recomenda uma ida rápida ao supermercado), cujo resultado imediato foi um piripaque devastador que fez o pai bater as botas.

E assim restou à madrasta continuar criando a pobre (agora sim) Cinderela. Os cartões de crédito e celular foram retirados da moça, que foi obrigada ainda a trabalhar no Bob’s para ajudar em casa, onde ainda tinha que lavar, passar e cozinhar para as três dondocas. Que crueldade, poxa!

Acontece que em dado momento foi anunciado um grande baile, com muita gente bonita, clima de paquera e damas grátis até meia-noite. (Esse último item seria retirado da divulgação porque muitos galalaus equivocados poderiam chegar ao local dizendo “ok, eu quero a minha para viagem”.) E o DJ convocou geral para o evento, queria todas as meninas da região, a fim de escolher a rainha da parada. Como a madrasta feiosa soubesse que Cinderela iria chegar divando no baile, proibiu-a de participar, pois a jovem não tinha trajes adequados para tal festividade.

Triste que só, Cinderela seguiu a dica de umas amigas e passou num brechó, onde adquiriu a preço de areia (banana prata a 9 mangos o quilo nos impede de usar a expressão correta) um kit basicão de shortinho e top. A vendedora, no entanto, alertou que as roupas precisavam ser lavadas antes do reuso, pois não se sabia a procedência. Mas na pressa Cinderela se trocou e tomou a carreira para o baile.

E então a madrasta e as duas filhas estavam lá, torcendo para serem clicadas com seus vestidos de casamento dourados e excesso de maquiagem que já endurecia seus rostos em máscara, até que Cinderela fez uma entrada triunfal justamente quando tocava um funk melody clássico da década de 1990. “Essa manda bem no passinho”, disse o DJ lá do alto, já apontando para sua escolha. Mas quando ele desceu para pegar sua selecionada como quem captura um pokémon, algo inusitado aconteceu.

Conforme Cinderela ia dançando, seu suor se misturou ao da antiga dona da roupa, gerando um bodum sinistro e matador, que fez a jovem se pirulitar do baile numa carreira de fazer inveja ao Usain Bolt. Na pressa, um dos pés do seu tênis ficou para trás. E o DJ ficou apenas com essa lembrança da sua musa daquela noite.

Nos dias seguintes, correu por toda a região atrás de uma moça que tivesse perdido um pé do tênis. Estava obcecado, com ideia fixa na coisa. E várias garotas diziam ser delas o calçado perdido, mas em algumas nem entrava no pé, e outras o DJ nem queria que tentassem calçar, como foi o caso das duas irmãs brucutus. Já desconsolado, viu que na rua havia uma moça entrando numa lanchonete, e ela estava com apenas um pé calçado com o tênis, no outro um  chinelo. E como a moça fosse toda certinha, viu que valia a pena confirmar.

“Minha princesa”, disse a Cindelera, mostrando o tênis, que só então descobriu ser parte do uniforme do Bob’s.

“Aff, dá isso aqui. Agora vaza”, respondeu a moça, em tom de estresse.

“Mas como? Você é a minha escolhida do baile. Vem ser minha poderosa!”, implorou o DJ balançando os cordões e as pulseiras de ouro.

“Jamais! Sai pra lá!”, replicou a moça.

“Mas você não foi ao baile para ser a rainha?”

“Quem te disse isso? Eu fui só pra dançar mesmo, tio”, finalizou Cinderela, que pegou o tênis e saiu correndo para bater o ponto. E, quem sabe, ser Destaque do Mês.

Moral: a crise afeta todos e tudos

Moral 2: nem toda madeira que boia é jangada

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Assunto crônica

Clubes de leitura e a solidão compartilhada

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ilustra: FP Rodrigues

para Victor Simião e Flávio Rodrigues

Interrompo a série de versões atualizadas dos contos clássicos com pitadas de clichês contemporâneos, cuja escrita tem sido uma grande diversão, para falar de outras coisas um pouco mais sérias. Mas não se acostume, leitora, pois semana que vem estarei de volta com uma revisita à Cinderela. Quem vir ler, lerá.

Semana passada tive duas experiências incrivelmente interessantes no Paraná, essa potência literária de fazer inveja a Rio e São Paulo. E nem digo de Curitiba, cuja vida cultural é intensa que não entendo por que não engata ali uma Bienal do Livro. Estive em Londrina e Maringá, cidades de médio porte que dão um banho pela tranquilidade e organização, especialmente pelo contraste que senti após sair de um Rio de Janeiro em estado de caos por conta das Olimpíadas que estavam para começar.

Pelo IBGE, Londrina já seria de grande porte, uma vez que ultrapassou os 500 mil habitantes. Mas o charme de lá é, pelo menos ainda, de cidade menor. Cheguei à Universidade Estadual, escoltado pelo escritor e camarada Marcos Peres, para conversar com algumas turmas de Letras. Ao entrar no anfiteatro, o professor já lia para a turma o início do meu romance, o que me causou grande acanhamento, reavivando a timidez que tive a vida inteira e contra a qual luto sempre que vou falar em público.

Mas bastaram uns minutos de papo para que surgisse uma identificação mútua e começássemos a trocar ideias. Como fosse à noite numa sexta-feira, falava com um grupo que luta para conciliar o trabalho durante o dia, as aulas e as leituras, que costumam tomar os finais de semana e quaisquer horas livres que surjam. Daí que, convidado para falar sobre criação literária, não me preocupei em dar um aulão teórico, mas, sobretudo, em papear sobre essa condição de estudante com pouca grana e muito sonho. E reencontrei nos olhares da galera o aluno de Letras que fui, e de certa forma ainda sou, procurando conhecimento e espaço para expressar uma voz literária que começa a tomar forma por volta dos vinte anos.

Não é fácil, nunca foi. Primeiramente, porque já se apregoa, mesmo na Academia, uma ideia falsa segundo a qual os cursos de Letras não devem formar autores, mas se restringir ao magistério. Tremenda bobagem. Se o escritor deve ter qualquer origem e formação, sem preconceito, por que negá-la justamente ao espaço onde a literatura é estudada como prato principal? Outro fator é que os acessos à publicação, ainda que tenham melhorado nos últimos anos, continuam bastante restritos ao jovem de interior/periferia não apadrinhado. Escrever literatura no Brasil é uma eterna corrida com barreira. O exercício e a persistência é que podem garantir a continuidade na pista para aqueles que estão dando as primeiras passadas, especialmente depois de cada inevitável tombo. E os tombos continuam vida afora, convém lembrar.

No dia seguinte, em Maringá, estive com o Clube de Leitura Bons Casmurros. Trata-se de uma turma bem diversificada que se reúne a cada três semanas para discutir um livro previamente lido (se está lido só pode ser previamente, ó pá!). E o meu romance foi a bola da vez.

Venho participando de vários eventos literários nos últimos anos. Muitas vezes os encontros com leitores seguem um roteiro parecido, e fica-se sempre com a sensação de que teria sido melhor caso as pessoas tivessem lido algo do autor. Faz toda a diferença. Nos clubes de leitura, a intenção é exatamente entrar no livro e trazer as questões capturadas para que sejam apresentadas e discutidas. O protagonista é a obra literária.

Se num evento com centenas de pessoas é impossível a interação entre todos, no caso dos clubes de leitura a ideia é justamente que todos participem. Como se trata de um grupo pequeno, composto por 20 integrantes, há espaço e tempo para que todos se manifestem. E foi isso que encontrei.

Passei a maior parte do tempo calado, ouvindo as discussões suscitadas pelo livro, algumas bem novas para mim. Geralmente lemos isso em textos teóricos bacanudos, mas nessas situações reais é possível comprovar que a leitura literária é uma troca de experiências singulares, pois cada um traz sua bagagem para dar sentido ao que leu, e assim faz do livro algo novo e único. E no fim das contas o resultado é a formação de leitores cada vez mais acurados, com visão ampla de livros e de mundo. A leitura, assim como a escrita, é um ato muito solitário, mas nesses encontros se descobre que a solidão literária pode ser bela e produtivamente compartilhada.

Não acredito que haja uma solução mágica para que aumentemos da noite para o dia os nossos números tão esmirrados na área da leitura literária. Mas se os clubes de leitura – cujo custo é praticamente zero – fossem estimulados em todos os bairros do país, utilizando livrarias, bibliotecas, escolas, centros comunitários et coetera, acredito que em algum tempo a situação começaria a melhorar.

Porque há uma necessidade de reinvenção do mundo entre as pessoas, e a literatura pode ser um caminho privilegiado para isso. Foi o que aprendi nesses dois dias como aluno e, ainda que por um dia, membro do clube.

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Assunto crônica

Peter P@n e a síndrome do peterpânico

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ilustração: FP Rodrigues

Era uma vez um jovem que, como todos os demais, estava embebido de empoderamento da sua voz como ser social, além de pertencimento da territorialidade mundana e do protagonismo proativo diante da rapaziagem.

Assinava Peter P@n nas redes sociais, assim bem anglófilo mesmo e com direito a arroba, por conta da ampliação da comunicabilidade e porque fica mais da hora. E por isso é que o mancebo tinha bastante seguidores no facebook, insta, twitter, snapchat e outro aplicativo que já saiu de moda entre a escrita dessa crônica e sua publicação. Seu canal no youtube, em que comentava sobre as próprias postagens das outras redes sociais (cujo assunto principal, por sua vez, era a repercussão do canal) começava a bombar e já pensava em fazer livro, caneca e camiseta, a fim de agregar valor no autoimpulsionamento.

Mas Peter, tal como um playmobil, era relativamente articulado. Ainda que mal saísse de casa, participava de todos os abaixo-assinados que chegavam por e-mail, num engajamento de dar gosto. E na segurança virtual (a verdade é que quase não saía de casa) não deixava de atacar maiorias e minorias de acordo com o termômetro do politicamente correto da semana. Assim como o ovo e o café, mudava de postura de acordo com as pesquisas recentes, garantindo likes suficientes para, em poucos meses, começar a se entender como uma celebridade.

O que ninguém desconfiava era que, ambiente doméstico, havia certa preocupação com o fato de o rapaz ter abandonado os estudos para se dedicar à nova profissão. Algo de que o pai desconfiava por não achar aquilo trabalho de verdade, mas a que, por outro lado a mãe dava força – ela mesma começou a surfar na onda virtual que o filho gerava, tendo concedido uma entrevista sobre “a vida pessoal do Peter” para um blog de fofocas.

Os tempos foram passando, passando, as tecnologias evoluindo, evoluindo, até que surgiu um projeto piloto de realidade virtual a que só teriam acesso uns poucos jovens antenados, grupo do qual Peter fazia parte. E nesse mundo novo, chamado de Terra do Sempre, a imersão era um tipo de Matrix, porém mais colorida e cheia de aventuras irresistíveis: luta contra sites piratas, fadinhas, crocodilos e índios. Nessa altura, Pokémon Go era apenas uma referência legal antiga, tipo Atari.

Peter P@n não conseguia sair mais daquela projeção virtual, e o mundo cá de fora, chato pacas e limitado, era apenas tolerável a base de ansiolíticos cada vez mais fortes. Em dado momento, conforme o jovem esperneasse entre frescuras leves e convulsões babantes, a família desistiu de vez e passou a injetar os remédios numa sonda, por onde também começaram a ir os alimentos que o mantinham vivo. O pai, resiliente, parou de reclamar porque o canal Peter na Terr@ do Sempre já trazia rendimentos consideráveis para pagar o whisky 12 anos.

E assim o jovem Peter P@n, atrofiado e plugadão, chegava aos 40 com corpinho e cuca de 15.

Mas a natureza humana tarda mas não falha. Daí que Peter chegou voando em realidade aumentada na casa de uma jovem, por quem ele gamou de cara, fazendo tremer fralda geriátrica que usava no mundo real. A menina, pálida de óculos largos, datilografando poemas concretos numa antiga máquina de escrever, era neo-hipster e abdicava de todas as parafernálias tecnológicas, de modo que ela nem tchum pro adolescente tardio que fazia caras e bocas ali ao lado.

Como os índices de serotonina abaixassem por conta do toco real-virtual, a única solução encontrada foi a família aumentar a dosagem do tarja preta, cujo efeito imediato foi o rapaz converter a rejeição em força produtiva, criando o canal Forevis Young, mais um case de sucesso.

Moral: tem gente que se esforça para ser jovial e mal consegue ser imaturo.

Moral 2: cuidado, update que cresce pra baixo, tipo rabo de cavalo, não te faz um artista underground, mas factualmente pode levar a um montinho de bosta.

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