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As férias e o micro system perdido

Voltar de férias é um exercício anual de estranhamento. Para a maioria – que sai nesse período não por conta do alto verão, mas pelo intervalo escolar –, trata-se de uma amostra desgracenta de que a vida não era nada daquilo que os primeiros dias do ano mostraram. Sorte dos que podem sair em baixa temporada, quando tudo é mais calmo e barato, quando se pretende dar uns passeios.

Naturalmente, pior que voltar das férias é nunca voltar delas, algo que ocorre frequentemente nos Estados Unidos. Com leis trabalhistas diferentes e mais pragmáticas, ausentar-se por trinta dias da empresa é um grande risco de emitir um atestado de inutilidade. Por isso, muitos temem ficar longe da cadeira por muito tempo, a fim de não ter o posto ocupado pelo colega concorrente.

Como mencionei escola, solidarizo-me com a criançada que precisa fazer aquela famigerada redação inicial cujo título é “Minhas férias”. O que se espera é um relato simples em duas dezenas de linhas, que servirá de base para que o novo professor trace um panorama do nível de escrita da turma. Mas ao pobre aluno, ainda se adaptando (como se o jovem já não estivesse se adaptando o tempo todo à vida) a novos horários de dormir e acordar, rostos e pesos de mochilas, se torna uma pequena tortura.

Isso porque, tirando um ou outro grande passeio que pode se converter num registro de felicidade familiar, na maioria do tempo de descanso fazemos apenas isso: descansar. Daí que o professor deve bocejar enquanto lê dezenas ou centenas de textos com as sequências “fomos passear no shopping por causa do ar-condicionado, estava cheio e meu irmão idiota derramou o milk-shake de novo”, “vi uma série nova toda de uma vez, e depois descansei”, “fiquei emborcado no sofá jogando o game X, mas não consegui passar daquela fase e isso me deixou triste”, “meus pais me largaram de novo na casa da minha avó e foram viajar; fiquei vendo televisão o tempo todo”, “não fiz nada de importante e não sei o sentido de escrever isso”.

Lembro-me dessa época quando aluno. Na época havia ainda menos coisas para se contar, fora as visitas a primos ou a algum parente com situação financeira um pouco melhor, mas que logo se tornavam pequenas deprês ao voltarmos para a realidade. Daí que eu achava melhor não escrever as férias que existiram, mas as que poderiam ter existido, de modo que em vez de relatos eu escrevia pequenas narrativas, mas os professores não ligavam. A ficção ainda me serve para reinventar o real.

De volta ao trabalho, nesse estranho jet lag, tudo parece estranho e novo. Enquanto estou me inteirando de processos, documentos, e-mails e tento fazer uma lista do que é mais urgente, o pessoal da área de patrimônio passa por mim três vezes no mesmo dia: procuram um micro system desaparecido. E não deixo de voltar no tempo e pensar como era estranho ver aquelas pessoas que colocavam um rádio imenso no ombro para sair na rua dançando. Se eu já achava o batidão alto demais, como não seria para elas, que tinham as caixas de som explodindo no ouvido?

Em meio a tantas coisas sérias acontecendo no trabalho e no mundo (a repercussão nas redes sociais da morte da ex-primeira dama D. Marisa, por exemplo), minha mente se ocupou do micro system, como um caso policial. Até o fim do dia, soube que haviam encontrado num canto do almoxarifado apenas um pedaço do aparelho, mas as investigações continuariam até que o mistério fosse totalmente solucionado. Eles riscaram algo em folhas, como listas de suspeitos, e seguiram impávidos pelos corredores.

E assim, dessas desimportâncias, é tocada a vida fora das férias. Mas assim como meus colegas estão empenhados em achar o restante do micro system, hei de continuar investigando o que vale a pena dentro dessa realidade tão ordinária.

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Previsões literárias comentadas para 2017 (parte 2)

Semana passada foi apresentado o início dessa série sobre as previsões literárias de 2017, que me chegaram de assalto após eu ter uma crise de ansiedade e pânico provocada pela leitura do trecho de um livro de autoajuda escrito por um educador-motivacional-influencer. Para não dizerem que sou preconceituoso com os grandes sucessos da cadeia produtiva dos livros, fui conferir a obra, que está  na lista dos mais vendidos porque a editora comprou espaço nas grandes livrarias, que por conta disso divulgam melhor o livro e vende mais, e por sua vez não sai da lista.

E descobri então que a obra foi de fato resultado de um autor que estava obrando: os barbarismos e solecismos me atingiram de tal maneira que minha mente entrou em tela azul, vislumbrando um céu onde brotavam imagens de um futuro não muito distante. Tal como um Nostradamus da Zona Oeste carioca, organizei as informações por meses, a fim de compartilhá-las (não que eu as tenha curtido) com você, leitora.

Segue então a segunda parte da minha experiência demiúrgica:

Julho – Flip recebe não só menos público, mas também menos escritores. Na linha da diversificação, foram convidados arquitetos, manicures, cobradores de ônibus, master chefs, pipoqueiros, analistas financeiros, analistas políticos, analistas de Bagé, personal trainers, internet influencers e a organização dirá: “tudo trabalha com a língua, a linguagem, viva a liberdade, literatudos!” Porque esse negócio restrito ao mundo das palavra e encadeamento de frases não tá com nada mesmo. Coisa mais antiquada, sô!

Agosto – Ator da Globo que foi para a Record se lança na literatura. “Como uma onda no mar” é um livro sobre suas aventuras e desventuras indo à praia e a boates. Na entrevista, revela que nem gosta de ler e essa parte da escrita foi feita por um jornalista que topou não levar os créditos no livro, apenas na conta corrente. Livro vai para a lista dos mais vendidos porque editora pagou pelos espaços nas grandes livrarias blá blá blá… Ah, literatudos!

Setembro – Bienal do Livro do Rio bate recorde de público com a idade média de 12,6 anos. Se a edição passada foi marcada por jovens carregando malas, agora levam carrinhos de supermercado, e acidentes são inevitáveis por conta das malditas rodinhas. Editoras desistem de vez de qualquer literatura que não seja para esse público. Pela primeira vez na história pessoas estão lendo livros mais pesados que elas próprias. E olha que tivemos as tísicas do séc. XIX…

Outubro – Nobel de Literatura é concedido mais uma vez para um não literato, mas pela primeira vez a um brasileiro: Inri Cristo. No discurso de posse é apresentada pelas inricretes uma versão parodiada do funk “Bumbum Granada”. Inri tá tipo hóstia / e as mina água benta taca/ vai, taca, taca, taca…

Novembro – Livro de qualidade indubitável vende 5 mil exemplares mesmo sem divulgação e autor é rechaçado no meio literário. Nas redes sociais, colegas com quem compartilhava seus sucessivos fracassos jogam indiretas.  Vendido para o sistema, para o deus-mercado, neocoxinha, neopetralha, neo-isentão! Se chegar a 10 mil precisará pedir asilo em outro país.

Dezembro – Saem sucessivas listas de melhores do ano, excluindo naturalmente o livro do item anterior. Todos os prêmios literários vão para autor que também foi jornalista e editor, tendo recebido várias resenhas positivas dos coleguinhas. ExTerritório de mim trata de um escritor que entra em crise e decide passar uma temporada entre Praga, Budapeste e Amsterdam, onde se tranca no quarto e chora a fim de ruminar a própria ruína, matando-se no fim. O próprio autor foi para esses países (custeado pelos pais, claro) e a hipótese de autoficção não é descartada. Não entendi ao certo se o autor se mata, mas de todo modo vou dar minha contribuição não lendo o livro. 

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Previsões literárias comentadas para 2017 (parte 1)

 

Tempvs fvdit. A leitora mal acabou de postar a lista dos melhores livros de 2016 e já está fazendo suas projeções para o ano que já está correndo. Enquanto sofria fazendo as contas para saber se pagaria o IPTU de uma vez ou em cotas – considerando que no fim opto pela última -, tive uma crise de pânico. Por engano e na pressa, tomei um laxante em vez de ansiolítico, de maneira que tive um insight (ou seria outside?) no qual consegui ver o futuro do pretérito (todo futuro não é de um pretérito, ó pá?) de tudo o que ocorrerá no nosso pequeno grande universo literário.

Na correria, organizei por meses os principais acontecimentos de 2017. E como tenho meu distanciamento analítico, teci meus próprios comentários acerca de cada item. A margem de erro é de um ou dois superegos.

Janeiro – Divulgadas as listas de livros mais vendidos em 2016. Youtubers lideram. Quando falei que iria abrir um canal minha mãe achou que tinha a ver com dentista e tive ciência da minha anacronia com o mundo.

Fevereiro – Escritora cult com carência de Vitamina D divulga oficina literária de férias, para turma com no máximo 4 alunos: “Odeio Carnaval, praia e gente burra. Só parei as (re)leituras para (re)ver ‘Teorema’, do Pasolini.” Essas turmas geralmente fecham com metade, porque lotar oficina é muito mainstream, coisa do deus-mercado.

Março – Editoras descobrem novos baús e lançam livros inéditos de Tolkien, Fernando Pessoa e Renato Russo. Este último contém um apanhado de receitas de miojo, bilhetes de geladeira e canhotos de ingressos de cinema. Fico imaginando quando aparecerem os livros psicografados, porque esses caras devem estar num tremendo constrangimento além-túmulo de tanto aquém-bom senso.

Abril – Lançadas biografias não autorizada e autorizada de famoso youtuber de 9 anos. Aposto que logo em seguida ele vai fechar o canal e dizer que precisa se reinventar.

Maio – Grande rede de livrarias descobre que literatura brasileira vende quase nada não pelo conteúdo, mas porque os clientes preferem nomes estrangeiros. Editoras estudam assinar contratos apenas com nomes esquisitos, como P. V. Cirilo. Como meu último sobrenome é Pinto (sim, por parte de pai), vou mudar para algo internacional, como H. R. Pinterest, H. Pointclick ou coisa que o valha. Numa dessas podem me confundir com o Harold Pinter, cujos livros teriam sido descobertos num baú etc.

Junho – Divulgada a lista de convidados para a Flip. Mas apenas a de nomes internacionais, pois a brasileira será montada na última hora num tipo de sistema de cotas, considerando que 70% são da mesma grande editora de sempre. Pousadas esperam público menor por conta da crise e aumentam preços para compensar. E como acontece todo ano, vem no release: “essa será a melhor edição do evento”. Tá beleza.

(Não saiam daí, pois continua semana que vem. Mentira, saiam sim, de preferência para onde tenha ar-condicionado de graça!)

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Os melhores livros que não li em 2016

 

Agora que passou o período das listas, das retrospectivas, dos balanços, dos já-vai-tardes que se acumulam no final do ano, e aquela sensação de que todas as mazelas acumuladas numa época são resultado de uma conspiração obscura refletida no calendário, é hora de respirar. Dentro de ar-condicionado, de preferência, pelo menos para os que vivem em cidades como este Rio de Janeiro, metrópole na qual se você jogar um ovo para cima ele cai já cozido, estrelado com gema dura – ou para ser mais lírico, já em forma de pintinho.

Ainda não! A leitora deve saber que este cronista está escrevendo ainda em 2016, no último dia do ano, com o peso inexpugnável dos doze meses caindo sobre cada teclada. Desta feita, a ideia de que 2017 será um carrinho de mercado cheio de possibilidades ainda me é estranha, ainda que eu saiba que, desses itens, muitos não passam no caixa. E agora, já carregando as compras, olho para o que pretendi levar mas, por vários motivos, ficaram na cestinha das devoluções.

Embora 2016 tenha sido um ano de grandes bizarrices públicas, perdas imensas e indignação geral, foi também de muito trabalho e pequenas ilhas de vitórias. O cansaço de sucessivas viagens de trabalho ou de atividades literárias – as quais, ainda que muita gente não considere, são também trabalho – tomou boa parte do tempo.

E assim listo os livros mais importantes que me interessaram pacas mas que, por motivos dos mais variados, não li:

A resistência, de Julián Fuks – esse romance arrebatou um monte de prêmios, mas já gostava dessa prosa desde o “Procura do romance”, quando gerenciei a criação dos 60 booktrailers finalistas do Portugal Telecom. Espero não resistir à leitura.

Não, de Bruna Mitrano – essa jovem poeta tem uma carga lírica (ou antilírica, dependendo da perspectiva) bem forte nos poucos textos que li de forma esparsa. Quero vê-los no conjunto, ainda.

Descobri que estava morto, de J. P. Cuenca – o mote do livro é interessante – o autor descobriu um registro do próprio óbito na delegacia – e, pelo que conheço do autor, deve usar e abusar da autoironia.

Enclausurado, de Ian McEwan – li as primeiras páginas na livraria e me interessei muito pelo narrador (um feto ainda na barriga da mãe) e pelo tom. Mas quando comprei já estava numa correria imensa e já pensava que ele seria guardado para as férias.

Meia-noite e vinte, de Daniel Galera – a prosa firme e equilibrada do Galera é garantia de coisa boa, ainda mais com a temática de balanço geracional. Naturalmente, tem a inevitável sombra do romanção anterior, Barba ensopada de sangue, mas vamos ver. Também está na lista das férias.

O sucesso, de Adriana Lisboa – a Adriana é autora de um dos melhores livros que li na vida, o Sinfonia em branco, e tudo dela é acima da média. Um dos contos desse livro (Aquele ano em Rishikesh) havia sido escrito para uma antologia que organizei inspirada nas músicas dos Beatles, mas acabou ficando fora por questões burocráticas.

O tribunal da quinta-feira, de Michel Laub – quando vi que o enredo tratava de uma mulher que descobriu os e-mails trocados entre o ex e um amigo, fiquei logo pensando se tinha referência com um episódio ocorrido na vida editorial paulista há uns anos. Mas de todo modo parece ser um livrão, que saiu quando eu já estava funcionando na luz de emergência.

Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch – O principal nome internacional da Flip me passou batido, pois mais uma vez passei todos os dias do evento correndo insanamente e resolvendo coisas, quase a ponto de chegar ao karoshi, nome dado aos japoneses que se suicidam por excesso de trabalho.

– Os 6 livros da série “The Witcher”, de Andrzej Sapkowski – meu lado geek lamenta eu não ter nem começado a ler esses romances de fantasia que geraram esse grande game – que contém mais drama que a maioria das novelas. Aliás, como as narrativas de games andam sofisticadas, felizmente. Nas férias vou ler o primeiro, prometo-me.

E que em 2017 sejam de muitas leituras! Mais do que possamos dar conta, porque, diferente daquelas camisetas com datas que ninguém usa depois, livro bom não envelhece fácil. Fica até melhor.

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Natal de fim de semana

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Ilustra: FP Rodrigues

 

O Natal passou que ninguém viu. Na semana passada, muitos correram durante a noite para as compras e os shoppings ficaram lotados com pessoas se atropelando como acontece em todos os anos. E como acontece em todos os anos alguém mais crítico parou no meio do corredor, pôs as sacolas no chão para descansar da maratona, olhou em volta e perguntou, imbuído de certo olhar analista: cadê a crise?

O Natal passou e todo mundo viu, porque me parece ser a data mais importante do ano para a maioria católica, e me parece que católica ainda é a maioria. Em termos subjetivos, só perde para o próprio aniversário, mas olhando para o mundo com um sentido de coletividade não tem concorrência.

E teve especial de Natal do Roberto Carlos se atualizando com os cantores do ano para agradar os idosos e os mais novos, a musiquinha da Leader Magazine só não deve irritar mais os funcionários da loja porque eles imaginam o quão ruim seria não ter sequer aquele emprego (meu irmão já trabalhou lá, e foi demitido sumariamente), teve um monte de Papais Noéis que conseguem trabalho emulando as temperaturas do hemisfério Norte, mas ninguém reclama dessa falta de lógica porque no fundo todo mundo sabe que o mito do Natal tem na verdade pouquíssima lógica como um todo.

Porque teve o inescapável e absurdamente figuraça Inri Cristo nos lembrando: o aniversário de Jesus é em março. A partir do ano 274, os romanos começaram a comemorar 24 de dezembro como “o dia do sol invicto”, porque era um tipo de vitória nasceu o sol depois da noite mais longa do ano. E com o tempo juntaram tudo numa festa só, e corrigir isso agora é algo que fica para as calendas gregas.

E teve um dos meus melhores amigos, irmão de vida inteira, que perdeu a mãe num acidente sem o menor sentido às vésperas do Natal, fazendo-nos questionar o sentido disso tudo – e o sentido disso tudo me foi revelado numa foto dele erguendo a filha na praia, com um céu azul imenso ao fundo.

E foi o Natal da falta de tempo num ano que se arrasta e vai arrastando tudo que encontra pela frente. As famigeradas Retrospectivas serão de lascar, por conta de tanta bagaceira que assolou tudo ao longo do ano – as pessoas, o Rio de Janeiro, o país e o mundo.

E nós aqui tocando o barco, olhando aflitos esse fim do segundo tempo e torcendo para  que não tenha prorrogação.

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Helicópteros

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Helicópteros passaram bem pertinho da janela onde trabalho por esses dias, quanto procuravam cerca de 50 bandidos que se escondiam no matagal.

Minha mãe diz que, quando éramos crianças, meu irmão e eu ficávamos loucos de felicidade quando víamos um helicoptêro.

Na semana anterior, um tiro de raspão havia atingido um funcionário lá da empresa.

Apesar do muro alto, parece que a bala fez uma curva, como nos filmes.

Depois dos helicópteros, ouvi tiros e saí da sala. Ao retornar, não consegui trabalhar direito e fui para o centro médico, tonto e com dores de cabeça.

Me deram um comprimido de paracetamol.

Um helicóptero caiu e morreram os quatro policiais que estavam dentro. Não sabem ainda se foi por pane ou tiros.

Três coisas param no ar: beija-flor, helicóptero e Dadá Maravilha.

Em vídeo, mães dos jovens mortos na guerra pediam autorização para procurar os corpos dos filhos no mato.

Havia aquelas séries da televisão com helicópteros: Água de Fogo e Trovão Azul. Meu irmão gostava mais do primeiro e eu do segundo, mas não brigávamos. Por isso.

O helicóptero caiu (ou foi derrubado) bem em frente ao meu trabalho, na beira do rio sujo.

Chopper Command era um jogo de Atari em que você controlava um helicóptero cuja missão era proteger uma caravana de outras aeronaves. Será que algum dos quatro policiais jogou esse game na época e recentemente pensava lá do alto “ah, se o eu moleque visse isso aqui”?

Foram encontrados 7 corpos na localidade chamada Brejo. Mortos com tiros.

Nos 4 mortos no helicóptero não havia perfurações de balas. No entanto, leio na notícia sobre o enterro: “os policiais foram homenageados com honras militares, o que inclui uma salva de tiros.”

Não se sabe ainda o que derrubou esse helicóptero, mas uma coisa é certa: não havia rico dentro e fora dele. Há alguns anos, 450 quilos de cocaína não foram suficientes para evitar que uma aeronave levasse nenhum dos poderosos envolvidos ao chão.

Não faz muito tempo que um acidente de helicóptero matou pessoas ricas e evidenciou as relações de corrupção do então governador com empreiteiro. Esse político está agora no presídio de Bangu, aqui na mesma Zona Oeste carioca.

Ouço agora o som de mais helicópteros sobre as nossas cabeças, indo na direção da Cidade de Deus. Na infância, gostávamos de amarrar libélulas com um pedaço de linha, e elas iam voando, voando, voando…

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Histórias da FLUPP

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Ilustra: FP Rodrigues

Na última semana, estive pela Festa Literária das Periferias – Flupp. O evento aconteceu aqui na Cidade de Deus, perto da minha casa. A Zona Oeste carioca não recebe tantos investimentos culturais – não pega o capital concentrado na Zona Sul nem tem a mística suburbana na Zona Norte –, daí foi um privilégio esse tipo de acontecimento nestas plagas.

Neste ano, a Flupp recebeu o prêmio de melhor festival literário do mundo, batendo a própria Flip que lhe dera a inspiração para o nome e o conceito inicial de colocar o escritor em evidência. Se um lado a Flip modificou profundamente os formatos de eventos literários no país inteiro, sendo matriz para dezenas de projetos com as iniciais F e L, a Flupp foi a que mais conseguiu dar um salto de ousadia. Isso porque a literatura, seja na produção como no seu consumo, está historicamente associada a um tipo de público mais iniciado, que se concentra nas localidades acessíveis aos ricos (não aos maiores ricos que, em geral, são estúpidos e não leem nada). Então a turma decidiu fazer a festa literária justamente dentro das comunidades, inicialmente associadas às Unidades de Polícia Pacificadoras. Pelo que a leitora deve acompanhar pelo noticiário, as UPPs não deram certo, mas a Flupp sim.

Participei da primeira edição do evento, em 2012, no Morro dos Prazeres, comunidade carioca colada ao bairro de Santa Teresa. O homenageado, convém lembrar, era o escritor carioca Lima Barreto. Segundo acaba de ser divulgado, será o homenageado da Flip em 2017.

Uma vez que frequento projetos literários de todos os portes, fico sempre preparado para encarar qualquer tipo e volume de público. Chovia naquele sábado e tive uma grande surpresa ao me deparar não só com uma estrutura imensa para os padrões cariocas, como também ao ver que o espaço estava lotado. Era dentro da Flupp Parque, braço do evento mais voltado para o público juvenil, mas havia famílias inteiras lá, e tivemos uma tarde maravilhosa. Aqueles moradores não precisariam mais ir aos lugares chiques para tentar entrar nos eventos culturais onde, tradicionalmente, não se sentiriam bem-vindos. Agora havia um festival literário de primeira feito para eles.

Desde então, em todo evento de que participo, seja como autor ou do lado de dentro do balcão, penso sempre na metodologia e visão da Flupp. Reclamamos sempre da falta de leitores, de consumidores de bens culturais que não sejam aqueles mais populescos. Mas numa olhada rápida, por exemplo, nos projetos aprovados pelas leis de incentivo, como a Rouanet ou a de ISS, para vermos que os proponentes são, em sua maioria, as elites de sempre. E para justificar o uso de dinheiro público inserem umas cotas de distribuição de ingressos ou livros ou quaisquer produtos para escolas públicas ou “crianças carentes” que nunca irão conhecer. A Flupp faz exatamente o inverso: a periferia é o centro da coisa.

Neste ano, me escalaram para entrevistar jovens que participaram de um game de perguntas e respostas para celular envolvendo o autor homenageado, Caio Fernando Abreu, além de questões sobre literatura carioca de periferia. Novamente fiquei surpreso, pois descobri serem alunos da escola pública onde estudei no Ensino Médio (quando ainda era Segundo Grau, ó tempus fugit).

Diferente da minha época (que dor nas costas!), esses alunos têm mais contato com os livros, ainda que se orgulhando de ler mais autores estrangeiros do que nacionais. A ideia de leitura não é mais associada a coisa de nerd ou de alguém deslocado. Lembro-me de uma vez em que, como não queria jogar futebol ou qualquer outra coisa no tempo vago, fui para a biblioteca e me aplicaram um belo bullying (o termo não existia, mas a prática sim) porque estava lendo “Eram os deuses astronautas?”, do Erick non Däniken. Tempos depois descobri que de fato as teorias desse autor são uma grande picaretagem, mas duvido que foi por causa disso que os colegas me trollavam.

De todo modo, já marquei de visitar a minha escola e conversar com os jovens alunos sobre leituras. Só um projeto como a Flupp, aqui nas periferias cariocas, permite que a gente (re)encontre e dialogue com quem somos em essência.

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Das pequenas e grandes resistências

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Semana passada visitei uma escola pública para conversar com alunos na sala de leitura. Sempre tento conseguir tempo para esse tipo de atividade, que é das experiências mais maravilhosas para quem trabalha no ramo das ideias. Mais do que nunca, ceder nosso tempo ao encontro com os jovens não é caridade ou favor a conhecidos que trabalham nas redes de ensino, mas mergulhar na fonte mais importante que constitui o caldo social.

(Pobres dos meus colegas de escrita que, na sua segurança de classe média, torcem o nariz para esse tipo de público, enquanto aguardam convites para eventos literários chiques.)

Quando fui aluno da rede pública, praticamente durante toda a vida de estudante, não havia muito espaço para que expressássemos opinião de forma séria. O jovem pobre era um potencial bandido e, além de não ser ouvido, sofria um bullying constante até fora dos muros da escola. Lembro-me de um episódio, da época do Ciep, quando fomos dar um passeio (rolezinho?) lá pelo calçadão de Madureira depois das aulas. O segurança das Lojas Americanas nos acusou de estar roubando doces, levando-nos para um canto da loja. Em seguida, com outro sujeito que estava sem uniforme, nos mostrou um martelo de alho, com que ameaçou esmagar as nossas mãos caso voltássemos à loja. Amedrontado, não entrei mais lá de uniforme, ainda que nunca mais o nosso grupo de colegas tenha falado sobre o assunto, dada a então normalidade daquele tipo de cena.

Hoje é possível que esse tipo de situação aconteça. Mas um aparelho celular com câmera poderia filmar toda a ação dentro da loja, que poderia se espalhar nas redes sociais até que a rede de lojas se desculpasse publicamente. O preconceito existe e, pelo cenário político em torno das áreas de Educação e Cultura, infelizmente não deve sair de cena tão cedo. No entanto, me parece que temos uma geração de jovens mais atenta, com acesso a informação e direito a voz.

O fenômeno das ocupações das escolas é um plot point histórico. Aprendemos que matar aula era uma coisa boa, evitando o máximo possível a permanência no espaço escolar. E agora vem a garotada promovendo justamente o contrário. Precisamos urgentemente encontrar um antônimo para matar aula – viver aula?

(Acabo de ler que duas escolas ocupadas têm desempenho acima da média no ENEM.)

Penso isso tudo e volto ao papo na Escola Municipal D. João VI. Trata-se de uma unidade de integração, em que alguns alunos com diferentes deficiências convivem com os demais. Enquanto eu falava com a galera, um aluno fez várias perguntas a respeito de literatura, quadrinhos e mercado de trabalho. Esse jovem, Lucas, é autista.

São dessas pequenas resistências que se formam as maiores, e nos dão esperança de que nossa sociedade saia dessa barbárie cyberpunk para a qual ensaia caminhar.

Leio o comovente e duro livro “Poemas do povo da noite”, do tocantinense Pedro Tierra. Foi escrito enquanto o autor estava preso, no regime ditatorial, quando tinha seus vinte e poucos anos. E no primeiro verso do primeiro poema, diz: “Perdemos a noção do tempo”. Quarenta anos e duas gerações depois, acho que poderemos ressignificar essa matéria chamada tempo com aqueles que ainda os têm nas mãos. Esses alunos, para mim, representam essa resistência: à opressão do mundo, da política, de um futuro míope.

Uma das perguntas que me fizeram era sobre de onde vêm as ideias para se escrever. Comentei com os alunos: estar aqui com vocês é uma grande motivação e me enche de ideias. Por isso esta crônica é dedicada aos alunos e professores da Escola Municipal D. João VI, de Higienópolis, Rio de Janeiro.

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A escrita contra o esquecimento

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Nesta semana, uma jovem booktuber postou um vídeo em que comentou sobre o meu romance. Venho acompanhando de perto esse movimento interessante e potente dos jovens em torno da leitura. Enquanto há algumas gerações a literatura dependia de alguns canais oficiais para ser divulgada e debatida, como os suplementos literários dos jornais, hoje temos uma situação diferente. Qualquer pessoa pode abrir um canal na internet e comentar seus livros preferidos, promover debates e fazer as ideias circularem.

Claro que isso não resolve o problema da leitura. É meio triste que, enquanto os booktubers se tornam as pessoas que mais influenciam leituras espontâneas no país (no mundo não sei dizer), esses meios tradicionais estejam desaparecendo. Porque com eles alguns profissionais com mais preparação técnica e mesmo com maior bagagem de leitura, como críticos e jornalistas literários, vão ficando cada vez mais relegados ao cantinho dos seus nichos. E muitas vezes os booktubers, por serem em sua maioria bem recrutas, acabam tratando de apenas alguns segmentos mais popoulescos para a sua faixa etária, como os de fantasia e chicklits.

Tento olhar positivamente para essa questão toda, entendendo que talvez estejamos vivendo uma transição nesse modelo, e que indivíduos como os booktubers venham a se profissionalizar cada vez mais, ampliando os seus raios de cobertura para a diversidade literária que vem sendo produzida. As grandes editoras já estão fazendo as chamadas “parceiras”, enviando exemplares diretamente para esses blogs e canais, considerando que eles são bons canais de divulgação.

Mas considere, cara leitora, tudo acima um grande nariz de cera pinoquiano. Porque o que vim contar mesmo foi o resultado do vídeo da jovem. Após assisti-lo, ouvindo os comentários, especialmente no ponto em que ela tratava do ambiente de pobreza carioca na década de 1990, um colega do meu trabalho veio me procurar. Disse que aquilo o fez se lembrar da sua adolescência e de um grande amigo que teve entre a infância e adolescência. Era o seu melhor amigo, com quem compartilhava os sonhos de “ser alguém na vida”. O amigo almejava entrar para o BOPE, correu atrás e conseguiu. Mas logo em seguida saiu, fez uma série de escolhas erradas na vida, ate que desapareceu. Depois de um tempo, foi encontrado vivendo acuado num quarto, de favor, doente. Conseguiram leva-lo para um hospital, onde morreria logo em seguida.

Omiti detalhes que me foram narrados, para resguardar a memória do amigo do meu amigo, pois não são necessários aqui. Mas depois desse relato – e a essa altura já o tinha chamado para um café na copa, pois ele estava muito emocionado enquanto me contava –, meu camarada me fez a pergunta que me tocou profundamente:

– E aí, você acha que vale uma história?

Meu colega me procurou, abrindo a gaveta de suas memórias, na esperança de que eu pudesse transformar a jornada do amigo em literatura. Quem escreve cansa-se de ouvir coisas como “minha vida daria um livro”, ou “um dia vou te contar minha história”. Mas no caso houve apenas uma esperança de que, ao investigar e verter em ficção, o amigo iria permanecer. Essa constatação me comoveu na hora, e ainda estou comovido, pois sem querer meu camarada tocou num dos pontos mais importantes da literatura. Escrevemos para não esquecer. Para não nos esquecermos. Tanto no nível individual e subjetivo quanto no coletivo e social.

Lidamos com símbolos, metáforas, máscaras de estilos que dão formas a ideias. São processos técnicos. Mas da ficção científica à chicklit, da poesia ao realismo fantástico, do livro infantil ao policial, estamos sempre, de formas diferentes, mergulhando na experiência humana versus o esquecimento.

Há menos de um mês, um infarto fulminante levou o Teixeira, que era um dos gerentes da lanchonete onde trabalhei. Ele foi um dos mais empolgados quando soube que eu faria um livro passado num fast-food, com algumas pitadas daquelas nossas vivências. De certo modo, para mim, o Teixeira agora se transportou para o livro.

Não sei se um dia vou transformar em ficção o relato do meu colega do trabalho. Mas ele me atentou para essa responsabilidade da literatura, que é guardar, bem no sentido daquele belo poema do Antonio Cicero: “por guardar-se o que se quer guardar”.

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Leituras de Parnaíba

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Semana passada estive em Parnaíba, onde fica um pedaço do já pequeno litoral piauiense. Trabalhei num centro cultural, protegido pela comodidade do ar-condicionado, mas o que gostei mesmo foi de sair, no almoço e depois do expediente, para olhar as ruas, praças e interagir com a gente de lá. Nessas viagens, o paradidático é tão importante quanto o didático.

Não foi minha primeira vez na cidade. Estive lá no ano passado, mas foi mais corrido e fiquei feliz de poder voltar para acompanhar os frutos que havíamos plantado. Também já estive noutro canto do estado, Valença, para participar de um evento literário há uns anos. Aliás, parece que nas cidades menores esses acontecimentos em torno do livro se tornam relativamente maiores, pois a população aparece em peso. Nas capitais, talvez pela correria e oferta desses serviços, o público é muitas vezes bem escasso.

Mas voltemos a Parnaíba. Diferente do calor absurdamente inumano de Teresina, essa pequena cidade do Delta recebe um constante vento litorâneo que diminui a sensação térmica, tornando agradável e possível uma suave flânerie.

(Em tempo: durante a mesma semana o escritor Carlos Henrique Schroeder chegava para ministrar uma oficina literária em Teresina. Eu o havia advertido sobre o calor intenso, pois se trata de um sujeito brancão de quase dois metros e careca. A surpresa foi ter caído um temporal com direito a granizo naquela capital, algo raríssimo. E o último romance dele se chama “História da chuva”. Coisas que só a literatura faz.)

Andando nas ruas parnaibanas descobre-se que o povo da cidade tem um orgulho tremendo das suas histórias, da sua urbanidade mais tranquila, do seu sotaque. Isso eu descobri porque zombaram do meu (pois quem tem sotaque é sempre o outro) ao dizerem que não tenho o sotaque típico carioca. Acho que a referência é o modo de falar praiano-zona-sul das telenovelas. Eu já adoro o uso e abuso que os nordestinos fazem da segunda pessoa. É bom demais, como dizem.

Bom demais mesmo é comer uma corda de caranguejo na beira do rio. O chamado caranguejo toc-toc leva o nome porque vem com um martelinho e uma pedra para quebrar o bicho e escarafunchar os pedaços em busca da carne deliciosa, acompanhado de baião de dois, farofa e molho. Após uma hora comendo as cordas (medida para quatro unidades), o caranguejo toc-toc é um prato que deixa o cliente todo respingado de caldo, com a boca e língua feridas, prostrado como se tivesse acabado de sair de uma batalha. Diz-se que o caranguejo é um alimento pouco calórico, mas acredito que isso se dê porque, depois dessa luta toda, o volume de carne que se retira de cada um é bem pequeno.

Apesar de cidade pequena, existe uma cena cultural bem efervescente em Parnaíba. Muita poesia e prosa sendo lida, escrita e discutida. A maioria dos brasileiros desconhece a vida cultural fora dos grandes centros urbanos, mas isso é assunto para outra crônica. Ou melhor, para outro tipo de texto. (Mas fico me perguntado quantos leitores da intelectualizada revista Piauí já foram àquele estado ou mesmo procuram conhecer a vida intelectual de lá.)

Porque em Parnaíba, em vez de nos afastar do nosso caminho, parece que o vento vai o tempo todo nos conduzindo para frente.

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Assunto crônica