Um sábado para Noel

O mundo é um samba em que eu danço
Sem nunca sair do meu trilho
Vou cantando o teu nome sem descanso
Pois do meu samba tu és o estribilho
“Até amanhã”, Noel Rosa

Sábado passado passamos por uma das experiências mais cariocas possíveis. Digo isso sem a soberba do bairrismo, sem a chalaça da autoironia, sem o saudosismo caquético de quando Rio estava na crista da onda – e mesmo quando ser escritor do Rio ou de qualquer lugar talvez significasse algo um pouco mais valorizado, pelo menos moralmente. O que fizemos no sábado foi lançar a antologia “Conversas de botequim”, composta por vinte contos inspirados nas canções do Noel Rosa. Isso tudo na querida livraria Folha Seca, lá na rua do Ouvidor, com uma roda de samba incrível do Chico Alves (homônimo do Francisco Alves, o Rei da Voz).

A história desse livro é bem engraçada e vale a pena contar novamente. Há uns anos, a prefeitura organizou num dos seus espaços um lançamento da coletânea “O livro branco”, composta por contos escritos sob a inspiração dos Beatles, que eu havia organizado. O carioquíssimo escritor Ruy Castro, sempre defensor das nossas cores, falas e sons locais, soltou na imprensa uma nota criticando o evento, pois “aqui não é Liverpool”, e que se fosse algo inspirado em Noel Rosa, daí tudo bem. De fato,   como ele provavelmente não tinha lido o livro, ignorava o fato de que era literatura brasileira, inclusive muitas das histórias produzidas soba as canções dos Fab Four eram passadas no Rio, inclusive a minha. Mas xenofobias à parte, respondi para a mesma coluna que até que ele havia nos dado uma boa ideia. Sim, Noel Rosa possui letras que renderiam bons contos!

Organizar um livro escrito por muitos autores é complicado, chato, moroso, que requer nossa capacidade de intermediar negociações com editoras e agentes, chegar a consensos de valores e contratos, compreender e moderar diferentes timings de criação literária – como se já não fosse difícil administrar os nossos próprios processos internos. Eu havia prometido não fazer tão cedo algo do tipo, e me concentrar mais nas produções literárias solo. Mas como resistir a uma provocação tão desafiadora quanto essa? Conversei rapidamente com o camarada Marcelo Moutinho, que além de ser grande escritor tem mão ótima para organizar livros coletivos, e partimos para a seleção do time.

“Conversas de botequim” driblou as dificuldades listadas, além de uma crise no mercado editorial sem precedentes no país, e nasceu suave. A diversidade de vozes literárias relendo Noel é uma riqueza imensa para o livro, sentimento que se tornou evidente quando nos juntamos para a foto dos autores presentes.

A literatura, seja no isolamento da pesquisa e da escritura, seja no silêncio da leitura, é uma arte das mais solitárias, todos sabem disso. Por isso esses momentos de festa são importantes, quando justamente as solidões se misturam. E então nos damos conta de que o verdadeiro poder das grandes realizações só se dá quando as ideias se convertem em ações compartilhadas.

Sabemos que a rua do Ouvidor foi a principal rua do Rio de Janeiro – e por extensão, do país, especialmente na segunda metade do século XIX. Não por acaso é cenário dos principais romances e de vários contos e crônicas do nosso Machado de Assis. Talvez por isso ele tenha se juntado com Noel Rosa para convencer São Pedro a não fazer chover e melar o evento, dado que a previsão de aguaceiros era de 80%. De líquido lá havia umas boas cervejas.

E é esse espírito carioca, bem no sentido de mistura e farofa, que celebramos Noel Rosa. Ele nos deixou aos 26 anos, cedo demais, assim como vários dos grandes poetas da nossa literatura – inclusive vitimado pela tuberculose, o mal-do-século que tanto vitimava os artistas de então. Mas talvez por conta disso também tenha permanecido jovial para sempre. Recriar suas canções pela via narrativa é uma forma de atestar sua genial perenidade.

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