Posso estar enganado, mas me parece que todos os escritores e artistas em geral vivem sempre numa oscilação mental entre si e o mundo. Os não-artistas também, claro. Mas é que esses indivíduos portadores de habilidades estéticas costumam, propositadamente ou não, passar um pouco da fronteira, seja para colher o seu material de trabalho ou para mostrá-lo. Vão demais, para dentro ou para fora.
E ainda com um agravante: o artista tem a firme convicção de que vai mudar o mundo. Essa empreitada quixotesca cai por terra não quando ele se dá conta de que não tem força ou expressão para isso, e sim quando descobre que o mundo, o mundão mesmo, não existe de fato.
A leitora pode pensar que estou misturando um pretenso tratado de estética com uma noite mal dormida, talvez até sofrendo a influência de bebida ou remédios de tarja preta antes da escrita. Não tanto. Ansiolítico algum me daria essa certeza de que a realidade não passa de uma grande abstração criada para nos controlar ou mesmo para nos manter nos eixos, evitando uma piração geral diante da nossa incapacidade de absorver a grande verdade, seja lá qual ela for.
(Lembro de três colegas de trabalho que apelidei de rivotrio.)
O Camões disse bem nos decassílabos: todo o mundo é composto de mudanças / tomando sempre novas qualidades. Heráclito, o patrono das empresas de fretes, já havia dito isso bem antes: o mais importante na vida é a mudança. Essas citações já tão batidas que nem precisei de aspas me vieram à mente quando, semana passada, vi um monte de gente confusa sobre algo que até então parecia simples: comemorar o dia internacional das mulheres tornou-se uma gentileza ou uma ofensa? Não quero entrar nessa questão, mesmo porque essas polêmicas surgem e desaparecem mais rápido do que a crônica, pescadora do efêmero, consegue reter.
Por exemplo, enquanto escrevo estas linhas todos parecem falar de Karnal, mas sei que até eu entender do que se trata já terá passado e os trendtopics serão outros, podendo me relegar ao ridículo da notícia velha. Retomando uma metáfora da era da mídia impressa (quem se lembra dela?), os cronistas precisam ter a perspectiva do peixe de feira que era embrulhado em jornais dos dias anteriores. Os passarinhos, cujas gaiolas forradas com desatualizações servem apenas para que eles manifestem sua opinião sob a forma de uma titiquinha.
Esse sintoma e sentimento de anacronia aguda – ou anagudeza crônica – que a lentidão nos confere tem apenas um lado bom, que é não se deixar tomar pela fúria instantânea e virtual que parece assolar tanta gente. Creio que a culpa deve ser dos logaritmos das redes sociais, que impelem as pessoas a ler e comentar determinados assuntos propositadamente direcionados para disseminar a cólera do dia, que será trocada por outra rapidamente. Essa técnica não é novidade, apenas tomou uma escala maior e veloz.
Nesses dias estive em Paraty a trabalho e, conversando sobre isso, concluí que a locomotiva de palavras que ordenam os logaritmos deve se retroalimentar num sistema virtual programado para a manutenção de um suposto estado de guerrilha que mantém as pessoas interessadas e democraticamente expressivas. Expressão e democracia são termos que traduzem conquistas, que de fato são. Mas desconfio que há um tipo de matrix nos controlando, ou pelo menos tentando.
Depois de umas e outras (sempre elas), cheguei a uma possibilidade efetiva para uma revolução libertária no mundo – e daí talvez minha maior contribuição para a missão quixotesca lá do início: se todos os bilhões de pessoas escreverem trocadilhos ao mesmo tempo, o sistema entraria em pane que faria caírem as cortinas que escondem o Mágico de Oz.
Já se disse, creio que o Millôr (sempre ele): um ditador pode evitar uma fotografia, não uma caricatura. Ou seja, não valem os memes, esses saborosos pitacos de humor que também têm o fluxo controlado. Minha proposta é de uma postagem maciça feito uma grande farofa, poética, dadaísta, em que os duplos, triplos sentidos vão bagunçar os anúncios, provocar colisões de interesses, distanciar e aproximar indivíduos de maneira randômica, redirecionar postagens aos abismos do inusitado. Depois do cataclisma virtual haverá um risonho e novo despertar da humanidade.
Dei a ideia e, antes que ela desapareça, grito como se pintasse num quadro de gelo: só a megafarofa de ideias salvará o nosso mundo!