A aula de Sérgio sobre Raduan

Na época da faculdade, havia um programa chamado Escritor Visitante, em que um grande autor oferecia uma oficina literária para os alunos. Recém-chegado àquele universo acadêmico, tudo era novo, ainda mais porque ninguém da minha família, até então, tinha entrado para o chamado ensino superior. Era negodi rico; ao pobre só restava a possibilidade de ser militar caso quisesse ser “alguém na vida”, era o mantra que ouvi durante toda a infância e adolescência, com evidentes ecos das verdades oriundas da ditadura. Sair disso era ser metido, achar-se melhor que os outros: ficar com rei na barriga. E como adolescente gosta de transgredir, essa foi a escolha que contrariava a regra, de modo que cometi uma pequena contravenção para me livrar da aeronáutica e entrar para Letras na Uerj. Aliás, a universidade hoje ameaça virar um grande esqueleto de elefante, e temo que em breve terei o mesmo sentimento quando passo em frente a um Ciep, de ver apenas uma carcaça do que um dia foi algo majestoso e belo.

(Mas isso tudo foi antes de cotas, da ascensão dos mais pobres a bens e serviços, incluindo a universidade, e lembrar pode me colocar no rol dos saudosistas caquéticos. E a vida é breve e o nosso material “é o agora / que mal chegou e já evapora”, como já bem disse o… Mentira, acabei de inventar por preguiça de caçar citação.)

Dizia que nesse programa de escritores da faculdade, me vi fazendo aulas com um escritor de que nunca havia ouvido falar mas que alguns colegas já cultuavam, o grande Sérgio Sant’Anna. Como boa parte dos alunos de graduação saídos de um Ensino Médio (ainda Segundo Grau) deficitário, nossa bagagem de leitura era muito restrita. E vejo que isso não mudou muito, já que muitas redes escolares ainda mantém a ideia de que a literatura começou no Barroco e acabou no Tropicalismo.

Mesmo sem saber que tinha aulas com um dos maiores autores brasileiros, ouvia atento as dicas, seu modo de ler e escrever, aquela caligrafia dele com letras diminutas, aparentando a preocupação com que fosse compreendido – pensava que um escritor de verdade deveria ter letras de médico. E uma frase do grande Sérgio (cujo filho André é hoje um grande camarada) ficou guardada: “Lavoura arcaica, por exemplo, é um livro tecnicamente perfeito”.

Acompanhei o trabalho do Sérgio, que se tornou um dos meus autores preferidos. Resenhei livro dele para o finado JB, fiz um ensaio sobre o seu primeiro romance no mestrado, sempre com o orgulho de ter sido aluno. Em meio a isso, li duas vezes seguidas o Lavoura arcaica, além do volume de contos Menina a caminho, deixando para depois Um copo de cólera, que apenas folheei e ficou como uma daquelas lacunas pessoais.

Sérgio tinha razão. Cada palavra é colocada ali como algo explosivo, e o protagonista André um dos personagens mais marcantes da nossa literatura. Os diálogos, especialmente na parte da família à mesa, de um poder que nunca vi igual nas nossas letras. Confesso que a mística em torno da reclusão do autor não me influenciou em nada nas leituras. Assim como provavelmente aconteceu com o Salinger e o Dalton Trevisan, acho que a ideia de não fazer parte do mundo diretamente, olhá-lo com certo distanciamento é, sobretudo, um recurso estético, cujo resultado pode ser tanto uma escrita mais pungente ou um silêncio que diz muito.

Por isso é que fiquei surpreso quando Raduan resolveu aparecer nos últimos anos, primeiro na Balada Literária, depois para uma fala política. Mas confesso que me causou constrangimento ao vê-lo, semana passada, no meio de um bate-boca na cerimônia de entrega do Prêmio Camões. Não creio que a literatura esteja acima das questões mundanas relacionadas a dinheiro, jogadas sujas de governos e posições políticas de jornalistas, militantes ou quem quer que seja – incluindo a do próprio autor. Porque a literatura bebe da vida mesmo, também do que ela tem de sórdido e sujo. Mas me pareceu que, por mais que tenha parecido um evento contendo elementos que o tornariam digno de entrar para a história, por conta das posições de todos os envolvidos, já evaporou, como mais um escandalozinho efêmero de redes sociais. O vídeo que circula e já será esquecido até sexta não condiz com o sentimento de ler o Raduan.

Por isso é que, de todo modo, prefiro voltar ao livro. E talvez a terceira leitura do Lavoura arcaica me faça entender um pouco mais sobre isso tudo. Ou então complique mais.

Comente

Assunto crônica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *