A escrita contra o esquecimento

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Nesta semana, uma jovem booktuber postou um vídeo em que comentou sobre o meu romance. Venho acompanhando de perto esse movimento interessante e potente dos jovens em torno da leitura. Enquanto há algumas gerações a literatura dependia de alguns canais oficiais para ser divulgada e debatida, como os suplementos literários dos jornais, hoje temos uma situação diferente. Qualquer pessoa pode abrir um canal na internet e comentar seus livros preferidos, promover debates e fazer as ideias circularem.

Claro que isso não resolve o problema da leitura. É meio triste que, enquanto os booktubers se tornam as pessoas que mais influenciam leituras espontâneas no país (no mundo não sei dizer), esses meios tradicionais estejam desaparecendo. Porque com eles alguns profissionais com mais preparação técnica e mesmo com maior bagagem de leitura, como críticos e jornalistas literários, vão ficando cada vez mais relegados ao cantinho dos seus nichos. E muitas vezes os booktubers, por serem em sua maioria bem recrutas, acabam tratando de apenas alguns segmentos mais popoulescos para a sua faixa etária, como os de fantasia e chicklits.

Tento olhar positivamente para essa questão toda, entendendo que talvez estejamos vivendo uma transição nesse modelo, e que indivíduos como os booktubers venham a se profissionalizar cada vez mais, ampliando os seus raios de cobertura para a diversidade literária que vem sendo produzida. As grandes editoras já estão fazendo as chamadas “parceiras”, enviando exemplares diretamente para esses blogs e canais, considerando que eles são bons canais de divulgação.

Mas considere, cara leitora, tudo acima um grande nariz de cera pinoquiano. Porque o que vim contar mesmo foi o resultado do vídeo da jovem. Após assisti-lo, ouvindo os comentários, especialmente no ponto em que ela tratava do ambiente de pobreza carioca na década de 1990, um colega do meu trabalho veio me procurar. Disse que aquilo o fez se lembrar da sua adolescência e de um grande amigo que teve entre a infância e adolescência. Era o seu melhor amigo, com quem compartilhava os sonhos de “ser alguém na vida”. O amigo almejava entrar para o BOPE, correu atrás e conseguiu. Mas logo em seguida saiu, fez uma série de escolhas erradas na vida, ate que desapareceu. Depois de um tempo, foi encontrado vivendo acuado num quarto, de favor, doente. Conseguiram leva-lo para um hospital, onde morreria logo em seguida.

Omiti detalhes que me foram narrados, para resguardar a memória do amigo do meu amigo, pois não são necessários aqui. Mas depois desse relato – e a essa altura já o tinha chamado para um café na copa, pois ele estava muito emocionado enquanto me contava –, meu camarada me fez a pergunta que me tocou profundamente:

– E aí, você acha que vale uma história?

Meu colega me procurou, abrindo a gaveta de suas memórias, na esperança de que eu pudesse transformar a jornada do amigo em literatura. Quem escreve cansa-se de ouvir coisas como “minha vida daria um livro”, ou “um dia vou te contar minha história”. Mas no caso houve apenas uma esperança de que, ao investigar e verter em ficção, o amigo iria permanecer. Essa constatação me comoveu na hora, e ainda estou comovido, pois sem querer meu camarada tocou num dos pontos mais importantes da literatura. Escrevemos para não esquecer. Para não nos esquecermos. Tanto no nível individual e subjetivo quanto no coletivo e social.

Lidamos com símbolos, metáforas, máscaras de estilos que dão formas a ideias. São processos técnicos. Mas da ficção científica à chicklit, da poesia ao realismo fantástico, do livro infantil ao policial, estamos sempre, de formas diferentes, mergulhando na experiência humana versus o esquecimento.

Há menos de um mês, um infarto fulminante levou o Teixeira, que era um dos gerentes da lanchonete onde trabalhei. Ele foi um dos mais empolgados quando soube que eu faria um livro passado num fast-food, com algumas pitadas daquelas nossas vivências. De certo modo, para mim, o Teixeira agora se transportou para o livro.

Não sei se um dia vou transformar em ficção o relato do meu colega do trabalho. Mas ele me atentou para essa responsabilidade da literatura, que é guardar, bem no sentido daquele belo poema do Antonio Cicero: “por guardar-se o que se quer guardar”.

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Assunto crônica

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