(Ilustra FP Rodrigues)
Acredito que, a essa altura, a leitora esteja ainda sob o impacto das eleições. Após dar pequenos saltos na água dos últimos meses e por fim ter inevitavelmente afundado, o assunto ainda deixa pequenas ondas até que, sem que nos demos conta, venha a desaparecer quase completamente no lodo do dia a dia. É incrível a forma com a qual as nossas altas relevâncias migram, tornam-se um tema de atenção mediana e, por fim, desimportantes.
Tenho visto nos últimos anos, especialmente pelas facilidades de expressão das redes sociais, um aumento da postura combativa das pessoas, especialmente em prol de lutas sociais. Paralelamente, o humor encontrou na internet um terreno fértil para se manifestar. Chama a atenção a rapidez com que uma ideia se torna um meme, viraliza e desaparece com a mesma velocidade. A princípio, pareceria um contexto amplamente favorável para o ressurgimento da imprensa alternativa, aquelas publicações independentes que, especialmente durante a ditadura, tiveram papel importante para combater o sistema, sendo O Pasquim o mais importante desses jornais. Imaginei que agora sim a contestação da seriedade pelo riso se tornaria mais democrática e realizada em escala.
Só que não.
É porque vem o Camões me sobrar o seu decassílabo “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Fico aqui catando elementos para tentar entender porque o tipo de humor mais utilizado hoje é menos ácido e mais rasteiro.
A primeira hipótese é de que as publicações alternativas não chegavam a tanta gente assim, comparando com a internet hoje. Pelo que me lembro, no auge do Pasquim a maior tiragem foi de 300 mil exemplares, o que é imenso, mesmo porque os índices de alfabetização eram bem menores na época. Mas hoje, por outro lado, temos ainda uma situação de 75% das pessoas economicamente ativas como analfabetas funcionais no país. Pode ser estranho constatar isso, mas se tanta gente não consegue entender textos simples, como compreender uma ironia? Ainda que possa ser verdade, essa hipótese não me convence totalmente, porque o mesmo tipo de humor é praticado em países com melhores indicadores de educação.
Parto para a segunda hipótese. Tal como no filme Matrix, a galera tende a projetar no mundo virtual uma persona do que gostaria de ser aqui na realidade de carne e osso. O politicamente correto chegou chegando, e talvez com uma pitada do parágrafo anterior, sobre a dificuldade de se entenderem ironias, o pensamento malemolente do humor pode se tornar menos flexível. Daí que soa bonito – especialmente porque postar uma ideia no conforto virtual não requer nenhuma ação real – apregoar um bom-mocismo com pompa e virtuosidade do que ser mais sardônico sobre o mesmo assunto. Assim, é facilmente possível ser um bravo militante virtual para causas nobres mesmo que não exista a menor equivalência na vida. E para manter a aparência dessa empreitada digital, ai de quem meter a mão na cumbuca do politicamente correto. Nelson Rodrigues, hoje, seria inviável.
Acho que foi o Millôr (sempre ele) que antecipou numa constatação: a língua deveria ter um sinal para a ironia. Quem nunca escreveu algo que foi levado ao pé da letra, tendo que explicar uma piada?
Nessa carona, uma nova hipótese, e não sou o primeiro a levantá-la, é a de que a liberdade total não é tão propícia ao humor combativo. Quando acabou a censura prévia ao Pasquim, o Millôr disse: “Ser livre, é bom notar, não é ser libertado. ‘Eu te dou toda a liberdade’ é a restrição suprema”. Há uns dois anos, quando o Casseta & Planeta encerrava seu programa na TV, mediei um debate sobre humor com o Tutty Vasquez e o Marcelo Madureira, e não pude deixar de perguntar sobre o fim do programa, considerando que o grupo tinha começado lá atrás, na imprensa alternativa, com a junção dos jornalecos hilários Casseta Popular e Planeta Diário. Sem pestanejar, ele revelou que os anunciantes de lojas populares pressionavam para que as piadas fossem cada vez mais tolas e superficiais porque o seu público assim exigia. E como não dava pra baixar mais o nível do trabalho, o programa foi pro saco. A percepção humorística do consumidor das Casas Bahia pode ser um sintoma de algo maior, não sei.
Mas o humor persiste. Ao longo de todo o dia, cada pessoa entra em contato com cenas, situações, textos orais ou escritos que favorecem a subversão pelo riso. A realidade está impregnada de outra realidade, que corre ao lado, não paralela, mas às vezes perto e às vezes mais distante. Diferente do politicamente correto, que se arma das virtudes, o humor desnuda os nossos defeitos, como um tipo de água benta do capeta que dissolve aquilo que atinge, podendo revelar, sim, a nudez do rei. Na tal modernidade líquida, o humor é chuva ácida.
Peço licença à leitora para citar Vladimir Propp, formalista russo que escreveu um livro interessante pacas chamado “Comicidade e riso”: “se o riso é uma reação aos defeitoshumanos, pode-se suporque o riso de umhumorista seja contínuo, na medidaemqueelevê na vidaapenas mesquinhez e abjeção e, porisso, o risível”. E já que estou citando, vale lembrar do Aristóteles: a tragédia mostra os homens melhores do que são; a comédia, piores. Abraçar os defeitos humanos e colocá-los em pauta pelo ridículo pode ser mais eficaz do que os cobrir com um manto bonitinho de aparências.
Depois de tanto falar pensamento humorístico, não cheguei a conclusão alguma. Estudei essa questão no mestrado e doutorado (ouço sempre que sou doutor em piada, mas rebato que meus trocadilhos têm o certificado RISO 9002) e anda estou cheio de dúvidas. Para testar na prática, camarada escriba Leo Cunha e eu criamos uma coisa chamada Trocadilhos de Quinta. Mas sobre isso falemos semana que vem. Até.