Ba dum tss – Defesa do Trocadilho – parte 1

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Ilustra: FP Rodrigues

Há pessoas que conseguem manter absoluto controle diante de uma situação social em que ideias e palavras coincidem de forma abrupta e geram aquilo que popularmente se chama de trocadilho. Guardam para si, riem para dentro num tipo de subriso, mudam de assunto levemente constrangidas, disfarçam o pensamento livre e lúdico, tudo a fim de voltar à plena normalidade do uso da língua. Que sérias essas pessoas, hein?

Já tentei por diversas vezes, mas não me enquadro nesse grupo por nada. É que, por algum motivo que não entendo bem, parece que desde cedo sou perseguido por trocadilhos. Não quero criar uma teoria conspiratória em que pessoas ou corporações criariam secretamente situações geradoras de duplos e triplos sentidos apenas para meu gáudio. Pelo contrário, o que me deixa espantado é a sensação de que toda a realidade está imersa num grande oceano de sentidos que se trombam a todo tempo. E o que me incomoda é a hipocrisia geral em ignorar esse caldo, nessas convenções sociais em que a seriedade total é aplicada como sinônimo de maturidade e ordenamento. Quando eu era mais novo isso poderia até parecer uma regra, mas olhando agora, de dentro, concluo que a seriedade não me convence.

Acredito que a leitora deve concordar comigo enquanto lê esta crônica. Sim, a liberdade criativa é muito mais interessante que a sisudez corporativa. O poético muito mais bacaninha no dia-a-dia do que o prosaico. O extraordinário do pensamento muito mais palatável que o ordinário-marche! Mas nem é disso ainda que estou falando. Penso mesmo é na aplicação direta da transgressão humorística do mundo real, fora da crônica. Sim, aí no seu trato com a família, com amigos e semiamigos, na sua reunião chata de trabalho, em que os colegas fazem de tudo para parecerem mais produtivos e inteligentes com um monte de jargões corporativos do momento.

Aliás, fica lançado o desafio: sair de uma reunião ainda neste ano, pelo menos em empresas que trabalham na área de Humanidades, em que não sejam proferidos os termos protagonismo, territorialidade, empreendedorismo, inovação e, como não poderia ficar de fora, empoderamento. Tudo agora está empoderado, até o cafezinho. E repare que muitas vezes essas palavras são ditas, com voz impostada e sobrancelha franzida para agradar superiores chefes e impressionar colegas, apenas porque estão na moda, assim como os anglicismos até há não muito tempo – ou ainda tem gente que estarta o feed-back do business do negócio?

(E a quebra de paradigmas? Quando é que vão quebrar o paradigma de tanto se falar quebra de paradigma e assumir de vez que estão todos estacionados num mesmo sintagma?)

Certa vez estava numa reunião dessas que, se espremidas, renderiam menos que um limão velho. O termo solução era falado a cada dúzia de palavras, acredito que para provar a resolução de um problema que, na verdade, nem existia, mas que dava terno-e-gravata a quem falava. Depois de um tempo ouvindo a mesma coisa, acabei me distraindo olhando um ponto fixo, até que distraído disse, meio pensando alto, que solução é um soluço grande, e a reunião teve que parar porque a ideia do sujeito ficou meio ridicularizada – ou foi revelado que tudo ali não passava de uma grande papagaiada.

Aristóteles ensinava boas maneiras ao seu filho Nicômaco, num livro que sobreviveu aos nossos dias. Uma delas foi “o gracejo é uma espécie de insulto”. O filósofo orientava que o excesso de riso poderia gerar um bufão, de maneira que era preciso dosar essas desconstruções no dia a dia. Mas e quando a sociedade se torna tão enrijecida a ponto de a seriedade se tornar um tijolo opressor com uma camada de glacê colorido por cima?

E o pior, como o humor pode voltar a ter um caráter corrosivo novamente, quando se tornou um recurso banal, incapaz de aplicar acidez no seu objeto, tornando-se até, via fagocitação de artistas do riso a grandes grupos de entretenimento, um mero ingrediente do glacê?

A leitora pode estranhar a relação da ideia do início da crônica com essa. O que fazer trocadilhos tem a ver com a percepção crítica – e diria até política – do mundo? Tudo, minha cara.

Os que fazem trocadilhos (ou calembur ou paronomásia, se quiser termos mais pomposos) são indivíduos que não se acostumam, não embarcam cegamente em ideias que lhes tacam como verdades corretinhas. Estamos vivendo uns tempos estranhos, de ditaduras invisíveis, pensamentos retrógrados que surgem como mortos-vivos, contrabalançados por outros aparentemente construtivos, mas que muitas vezes criam suas próprias cercas aramadas com elementos arriscados, como o politicamente correto. Em nenhum desses polos o humor pode entrar. E isso é perigoso.

Daí a importância do humor mais simples, o trocadilho basicão, morfológico e inconvenientemente transgressor. Por trás de um simples jogo de palavras há pequenos saltos de sentidos, hiatos onde eclode uma micro-revolução da linguagem, impedindo que o pensamento cotidiano vire aquele bloco de tijolo: mostrando a nudez do rei, o trocadilho revela a dureza escondida sob o glacê docinho que estão nos vendendo ou empurrando goela abaixo.

(Continua semana que vem, pois esse papo rende…)

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Assunto crônica

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