Carta à leitora marginal

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Ilustra: FP Rodrigues

Prezada leitora,

Estive por esses dias em Curitiba, essa cidade tão bonita e literária. Acho que é, hoje, a melhor capital do país para a antiga prática da flânerie. Flânerie era essa coisa de andar a pé sem muito compromisso, colhendo elementos da urbanidade que poderiam se converter até em poemas e crônicas. Sim, hoje também há muitas pessoas querendo colher pokémons, mas não sei se a metáfora funciona.

Sei que você vai dizer que elogio a cidade porque não moro nela. Que bastaria um mês vivendo aí para que fosse assolado pelo tédio, as temperaturas que variam abruptamente ao longo do dia e a violência que não para de aumentar, fora os engarrafamentos. Digo algo parecido com quem vem ao Rio de Janeiro e se encanta com a cidade. Agora mesmo nas Olimpíadas propus o clássico “vamos trocar então” para várias pessoas residentes em locais menos caóticos.

Mas é que Curitiba tem um tipo de mistério aberto, um claro enigma que nos (ou pelo menos me) convida para desbravar a cidade. Entre uma ida a restaurantes e outros pontos turísticos, encontramos os irresistíveis sebos de rua. Num deles fiz umas compras legais a preços camaradas. Entre os quais aquela primeira edição do “Quase Memória”, do Carlos Heitor Cony. Sim, aquela que tem um balão na capa. E a memória me levou de volta ao ano em que li o livro, 1997, quando estudava Letras de manhã e trabalhava numa locadora – segurando o exemplar, quase consegui ver uma fita de VHS não rebobinada. O Seu Armando, dono da locadora, era um grande e afiado leitor. Fazíamos nossos debates literários e esse livro rendeu um papo que me acompanhou para sempre.

Mas os livros dos sebos também têm suas memórias, e nesse tem uma dedicatória: “Tão banal, tão ele, tão grande. A meu pai, uma eterna criança.” É difícil não se comover. E também não imaginar todas as histórias ali por trás, que casam inclusive com o conteúdo do romance. Meus literocomparsas já exploraram essas pegadas dos livros: o Marcelo Moutinho fez um conto só com dedicatórias, e o Flávio Izhaki usou esse mote de anotações em livro, inclusive comprado num sebo de Curitiba, para seu primeiro romance, “De cabeça baixa”.

Outra grande surpresa foi encontrar um exemplar do meu primeiro livro, “A musa diluída”, cheio das suas anotações. Ele foi lançado há quase dez anos, e não sei em que período passou pela sua vida. Mas saiba que você deixou rastros nos poemas, sublinhando, riscando e completando com outras ideias. E com o seu texto me parece agora que se trata de outro livro, mais completo – ou menos incompleto – após a uma boa leitura.

“O que é poesia? Poesia é susto. O que faz um poeta? Ficar no que se é! Sobre a desesperança. A vida além do verso. O poeta é uma imitação de si. A noite é branca. Destino = distração”, vai escrevendo nas margens, comentando para si mesma. Acho que você notou que é um livro cheio de alusões líquidas, e vai nadando verso a verso, braçada a braçada, mergulho a mergulho. Mas quem sou eu para saber das suas águas, e o que se esconde na profundidade desses redemoinhos?

Como os envolveu a caneta e fez um comentário ao lado, você parece ter gostado muito do verso “Uso os braços para escrever e para dar adeus”, e mais à frente “Eu canto os meus contemporâneos / Solitários peterpânicos”. Terá se identificado por conta de um fim de namoro, a perda de um familiar, o isolamento numa noite de domingo em pleno inverno curitibano? Ou apenas encontrou relação com algo com que trabalha ou estuda, apontando para essas fragmentações e rupturas teóricas da tal pós-modernidade? Ou apenas passava o tempo enquanto esperava um ônibus desses de tubo?

Antes de ter seus livros publicados, muitos autores pensam que, após essa conquista, irão receber muitas coisas materiais e imateriais, como prêmios, convites para eventos, reconhecimento público ou de crítica e até, veja só, dinheiro. Depois de um tempo, e te digo como esses dez anos foram importantes para que eu conclua isso, parece que é mais o contrário.

Em livro, livramo-nos também de algo que nos inquiete e às vezes consome, e nesse momento as ideias guardadas nas páginas fogem a qualquer suposto controle que tínhamos sobre elas – daí a relativa desimportância de críticas, sejam positivas ou negativas. O importante é estamos livres para as novas distâncias e proximidades, que por sua vez podem se transformar em novas inquietações e livros. E assim segue o barco.

Por isso te agradeço, leitora. Talvez sem saber, seu texto me espelhou novos sentidos para um sentimento que é, em tempo, vida e poesia, bem mais que memória.

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Assunto crônica

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