Adolescente luta para superar trauma de estupro coletivo na Praça Seca
Os alunos do Ciep municipal Carlos Drummond de Andrade,
na Praça Seca, Jacarepaguá, estão sendo praticamente
expulsos da unidade, devido aos ataques frequentes
de vândalos e bandidos. No fim de semana passado,
o Ciep foi invadido e totalmente depredado.
Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. “Canção amiga”, poema de Carlos Drummond de Andrade, na nota de cinquenta Cruzados Novos. Lançada em 1989, ano em que estudei no Ciep. Beatriz não tinha nascido ainda.
Em pouco tempo, a nota deixou de valer, e desapareceu. Mas a escola não foi tirada de circulação. Foram lhe tirando a carne, o ritmo, o alimento, mas a poesia dela continuou. O prédio, esse retângulo cheio de olhos para a rua, é uma carcaça de outros tempos gloriosos e imponentes, como um cemitério de elefantes. As coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. E ficaram.
Os homens adormeceram e despertaram as crianças. A Beatriz nasceu nesse mundo caduco, onde meus companheiros estão ainda todos taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Seguimos de mãos dadas.
Eu tinha 13 anos quando estudei no Ciep. A Beatriz não estudou lá, mas foi por essa idade que ela já despertou outra criança, porque foi essa a canção amiga que o mundo cantarolou nos seus ouvidos. E é a canção que continua reverberando em tantas beatrizes para as quais estamos cegos.
Foi semana passada que aconteceu essa mescla trágica dos abandonos.
Por isso eu te peço perdão, Ciep, por te estuprarem.
Por isso eu te peço perdão, Beatriz, por ter sido invadida.
Eu te peço perdão, Ciep, pois quem devia te proteger foi te deixando pouco a pouco à mercê da crueldade animalesca dos homens e do mundo.
Eu te peço perdão, Beatriz, por dizerem que a culpa foi tua, por não haver porteiro nem vigia noturno, e tuas instalações estarem acessíveis para qualquer um que estivessem de passagem por ali.
Eu te peço perdão, Ciep, por te dilacerarem covardemente. Dói na alma, mais que no teu útero, e só tu entendes, só tu sentes as consequências que virão nas sombras de cada dia.
Tu sabias dos riscos, Beatriz, apesar da aparente segurança do teu entorno. E assim foi que te lançaste à sorte dos murmúrios, da oferta fácil para quem quisesse violar os teus recursos.
Enquanto tu dormias, Ciep, invadiram também os teus sonhos, e eles foram depredados quando deviam ter sido erigidos por essa massa abstrata que chamamos de sociedade.
Somos e seremos sempre os teus alunos, os teus filhos, teu reflexo mais profundo. E é por isso, Beatriz, que o teu abandono não é absoluto nem permanente. Tua estrutura permanece, e de ti não desistiremos.
Porque o que te levaram, Ciep, não destrói em definitivo a tua estrutura, que é humana.
Tu não és a primeira Beatriz invadida e depredada, tu não és o primeiro Ciep estuprado. Tampouco garantimos que serão os últimos.
Mas apenas hoje, no espaço limitado e tímido de uma crônica, eu te peço perdão, mas espero que não nos perdoe. Sobretudo, não nos perdoe, pois do perdão salta-se rapidamente para o esquecimento. Não nos perdoe, porque tu és a verdadeira rosa do povo, e rogo que nos lembre a cada dia do cuidado com a tua existência bela, imperfeita e necessária.
P.S.: amanhã, dia 01/06, vou ao Ciep Carlos Drummond de Andrade com outros escritores voluntários para um dia de atividades culturais oferecidos a alunos e professores, que estamos chamando de POEMAÇO. Esta crônica será lida em homenagem à Beatriz.