No balcão da livraria

(crônica publicada no site Vida Breve)

Nesta semana fiz a moderação de um debate cujo título era “O paraíso é uma espécie de livraria”. Tratava-se de uma referência à famosa frase do Jorge Luis Borges. Na verdade, não era uma frase, e sim um verso. Ou melhor, dois, do belíssimo “Poema de los dones”. O texto do Borges diz, decassilabicamente: “yo, que me figuraba el Paraíso / bajo la especie de una biblioteca”. Posso estar errado, mas talvez tenha havido uma confusão ao traduzirem o termo para o inglês (library) e depois voltou ao português na chamada casca de banana, em que palavras parecem uma coisa e na verdade são outras.

Palavras parecem uma coisa e na verdade são outras. E não é essa lacuna de equívocos, armadilhas, brincadeiras e jogos entre o que se lê e o que se pensa que se constrói toda a literatura? Posso estar errado também. Mas rogo à leitora que pare esta leitura e dedique uns minutos do seu tempo para ouvir o próprio Borges falando o “Poema de los dones” aqui. Se gostou da voz do escritor argentino, a leitora pode lê-lo aqui. E depois, se quiser ter acesso a ele o tempo inteiro, entre numa livraria e compre um livro dele.

Uma coisa boa de mediar um bate-papo entre escritores é que ouvimos mais do que falamos. Daí que tive uma breve aula com os autores que compunham a mesa. Entre a jovem Alice Sant’Anna e os seminovos Marcelo Moutinho e Flávio Carneiro, aprendi muito sobre a história das livrarias no Rio de Janeiro, com toda a vivência cultural que permeia esse comércio, do século XIX para os nossos dias.

Foi perguntado aos participantes sobre o quanto a presença em livrarias contribuiu para que eles se decidissem pelo ofício literário. E gostei muito de saber que o primeiro emprego da Alice foi numa livraria. Que privilégio entrar no mundo do trabalho com livros e pessoas ligadas a esse universo nos cercando. Não pude deixar de comparar, mentalmente, com o meu primeiro emprego numa lanchonete, e como teria sido se, no lugar de hambúrgueres e batatas fritas, houvesse livros. Mas logo em seguida me dei conta de que vários caminhos podem levar a um mesmo fim. De todo modo, como seria bom para o país se a vida profissional de muitas pessoas fosse iniciada numa livraria…

Por conta da polêmica em torno da extinção do Ministério da Cultura, que passaria a ser uma secretaria do MEC (e enquanto escrevo esta crônica fico sabendo que a governo recriou o MinC), fiquei espantado ao ver a reação de tanta gente sobre a área das artes. Muitas pessoas acreditam firmemente que cultura é algo secundário e dispensável, que agora sim, sem o dinheiro fácil do MinC, os chamados “artistas” iriam trabalhar. Como tanta coisa atrasada que temos, ainda persiste uma visão segundo a qual as atividades ligadas às artes são fruto de desvario e falta do que fazer. A literatura, mais solitária das artes, seria um lance de nefelibatas, aqueles que vivem nas nuvens.

E não deixa de ser, mas também. Ou melhor, vamos às nuvens e aos infernos, mas retornamos. A arte salta da vida e volta para ela, trazendo novas formas de ver e entender o mundo. Trabalhar nessa área é, também, mergulhar nos limites do entendimento humano, algo de risco e que precisa ser respeitado e valorizado.

Temos poucas livrarias no Brasil, algo em torno de três mil. É bem pouco, se considerarmos o aumento do poder de compra que a população em geral teve nos últimos vinte anos. Gastar dinheiro com esses objetos está bem longe das prioridades para a maioria da galera, cujas urgências são outras, quase sempre, essas sim, bem mais efêmeras. Inclusive sou bastante solidário ao escritor Marcelino Freire: nem a parentada compra os livros que ele escreve e publica. O Brasil não está lá, longe e abstrato, mas bem aqui, do nosso lado, no atacado e no varejo.

E é impossível não associar uma coisa à outra. Enquanto as pessoas não entenderem que a leitura abre cucas, que a arte é fundamental para o crescimento humano, vão ficar para sempre de fora desses paraísos que temos à disposição – sejam livrarias ou bibliotecas.

 

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Assunto crônica

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