Manoel de Barros como antídoto para o mundo caduco

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(crônica publicada no site Vida Breve)

Estive por esses dias entre Campo Grande e Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Ainda que minha ida para aquelas bandas tenha sido em missão de trabalho, tentei aproveitar cada intervalo para ler as entrelinhas das cidades, como sempre faço. Nunca tinha ido a esse estado, de modo que, entre reuniões e visitas a espaços durante manhã, tarde e noite, me vali da perspectiva da primeira vez para ser tomado pelas surpresas das descobertas.

Levei comigo na bagagem de mão, além do livro de contos do Alberto Mussa (escritor carioca que é uma mistura do nosso melhor amigo da vida inteira com Jorge Luis Borges) e o Nintendo portátil, o volume das “Memórias Inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros”. Há umas semanas tinha salpicado um verso desse livro para uma revista, que me pediu cinco frases de livros que me marcaram na vida. Por frase entendi também verso. Acho que basicamente a diferença entre os dois é que, no caso do verso, você não precisa ser egoísta de ocupar a linha inteira, deixando um espaço para o leitor preencher, mesmo que seja com a cuca.

E foi com o embalo dessa leitura que a cidade me recebeu: com lacunas e incompletudes que, numa paradoxal flânerie às pressas, um vagar corrido, fui escrevendo com o supetão de quem precisará voltar lá em não muito tempo. Disseram-me, e logo confirmei, que os sul-mato-grossenses são apaixonados por Manoel de Barros.

Sul-mato-grossense: esses hifens fazem a palavra parecer um trem. Existe por lá o Trem do Pantanal, que antigamente fazia o trajeto Bauru até Corumbá, mas foi desativado. Hoje faz apenas o trecho de Campo Grande até Miranda, mas hoje pouca gente procura por ser um passeio lento demais, e preferem pegar logo a estrada, mais rápida. E foi nela em que um oceano composto por centenas de bois brancos surgiu, desacelerando o trajeto, ruminando o tempo. Boitempo, como o do Drummond.

Manoel de Barros, que criou gado e devia saber disso, nasceu em Cuiabá, mas se mudou cedo para Corumbá e viveu boa parte da vida em Campo Grande. Imagino que os dois estados do Mato Grosso, o com Sul e o sem Sul, devam requerer a paternidade do poeta pantaneiro. Mas de tanto falar da terra e das miudezas, Manoel de Barros transcende qualquer chão, universal feito a cócega e a chuva.

Em dezembro o poeta faria 100 anos. Provavelmente lá as pautas dos jornais vão se voltar para o assunto e muita gente vai ler, mesmo que só pela internet, alguns poemas do Manoel. Não sei como estaremos lá no fim do ano: as previsões econômicas não são boas e nas redes sociais há um tempo as pessoas estão iradas e cheias de certezas sobre as coisas e o mundo. Sorte que economia, apesar da rima, é o oposto da poesia, e que a tecnologia ainda não conseguiu parar as rodas do tempo ou trazer imediatamente, para a vida real, a violência de um post.

Em Corumbá, zapeando a televisão no hotel, assistia aos depoimentos dos senadores. Tratava-se, provavelmente, do fato mais importante que acontecia no país naquele dia, naquela semana, neste mês. Mas para mim – e digo isso até com a não-saudade de quando trabalhei no governo e descobri que tudo lá é um grande teatro – o fato mais relevante desses dias foi conversar com uma turma de garotos sobre criação literária na beira do rio Paraguai, na fronteira com a Bolívia. Tratava-se, ali sim, de discussão séria sobre como reinventar o mundo por meio das palavras e das ideias.

Tecnicamente, o Manoel de Barros utilizava recursos simples e profundos. Entre a humanização das coisas e a coisificação do homem, lembrava da importância daquilo que, ao que parece, a humanidade está deixando para trás. Então em dezembro, talvez, a gente se lembre um pouco mais das inutilezas do que nos cerca, como um antídoto para dias tão prosaicos.

Por alguns instantes, pelo menos, seremos todos tão livres e importantes quanto o menino que carrega água na peneira.

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