Retratos VGA de uns amigos Full HD – parte 1

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(crônica publicada no site Vida Breve)

Outro dia estava me lembrando de uma série de textos do Millôr Fernandes intitulada “Retratos 3×4 de alguns amigos 6×9”. São perfis muito interessantes de artistas como Fernanda Montenegro, Paulo Francis, Henfil, Jaguar e Paulo Francis. Daí outra gaveta da cuca se entreabriu e me lembrou de uma resenha que fiz sobre livro dele chamado Apresentações, há uns 10 anos, para o finado Caderno Ideias do idem Jornal do Brasil. Nesse volume, o Guru do Meyer revela um traço marcante que teve a vida inteira: a generosidade. Em certo momento, diz: “a gente, queira ou não, vai deixando pedaços com os amigos, pedaços que nos ligam e interligam”. É isso.

Sortudo que sou, recebi uma pitada dessa generosidade. Há uns anos, o Millôr me enviou um longo e-mail após ler a minha dissertação de mestrado sobre o humor dele versus a política. E me caiu a ficha de que hoje, em tempos de linchamentos reais e virtuais, quase sempre por nada, pode ser uma boa reforçar a celebração do próximo. E, como disse, sortudo que sou, tenho o privilégio de lidar com figuras muito dignas de nota.

– Carlos Henrique Schroeder – catarinense de nascença, sem fronteira por vocação. E por isso mesmo é que o Carlos está o tempo inteiro de olho no local que existe em cada todo, e assim se faz global no bom sentido. Antenadíssimo, mesmo sem cabelo, revisita clássicos o tempo todo, mesmo os que ainda não foram escritos. Escreve prosa, dá aulas, edita livros e coordena eventos. Frutífero que só, ainda assim sobra tempo para manter a média de um filho por ano. Frequentemente confundido com o nadador Xuxa, vai mais longe, porque sobrenada as ideias, sempre em nado peito.

– Lucia Bettencourt – Ingressou na literatura já adulta, e por isso o tempo para ela corre ao contrário. Por isso sabe tudo de Proust, que oferece como um banquete aos seus alunos. Ganha todos os prêmios que existem, da ABL ao do condomínio, sem pestanejar. Ou melhor, a cada piscadela. Pesquisadora e erudita, está além da universidade, e por isso o campus é ao seu redor, onde quer que esteja. É tímida feito um caramujo, e não tirou a nota mínima no teste de ego. Vida que segue, passo por passo, vai continuar provocando Chronos até receber o prêmio De Plá de revelação do ano.

– Ronaldo Bressane – jornalista nas horas vagas de escritor, e vice-verso. Cria apenas quando está dormindo, e no resto do tempo apenas sonha. Escreve de um tudo, mete o dedo nas feridas e, se te fecham porta, vai logo descendo pela chaminé, sai pela porta e diz que foi engano. Sem papas, cardeais ou bispos na língua, diz o que deve ser dito, paga o preço e dá o troco, à guisa de gorjeta. Impostor autoproclamado em eu-lírico fingidor, está em busca não das meias verdades, mas das penumbras que rondam as meias mentiras.

– Luisa Geisler – precoce desde os 45 anos, a Luisa sempre foi nova demais para a sua idade. Despertou para a literatura antes que o galo cantasse, e ao começar a votar já estava consolidada como escritora mais famosa do seu prédio. E daí para além. Nada disso a impediu de dialogar abertamente com a própria geração, que não está nem aí para o lance da idade, coisa para caquéticos. Escreve fácil, mas pensa difícil e ninguém percebe esse intervalo. Cansada do hoje, busca sempre o amanhã de ontem, e assim que acha, sem sair do lugar, o reinventa.

– Alvaro Costa e Silva, o Marechal – o Marechal é o último dos mitos da imprensa brasileira. Inventor da dança do siri patola, que muitos acreditam nem existir, Alvinho escreve com a mesma maestria com que circula entre os bares cariocas: dose após dose, com conhecimento de causa. Enciclopédico de havaianas e boêmio, o Marechal bebe até o seu limite, amplo, geral e irrestrito, sem nunca perder o tom da conversa. Jornalista cultural acima de tudo, já discutiu sobre A Odisseiacom um ladrão, que desistiu da carteira e levou apenas o estímulo à leitura.

– Antônio Torres – Quando criança na cidadezinha chamada Junco, interior da Bahia, Torres era apenas um garoto querendo contar histórias. O que continua até hoje, felizmente. Não fez o sertão virar mar, mas fez a cidade caber na bagagem de volta. Publicitário até certo ponto, bandeou-se de vez para as letras, mas sem precisar de plano de endomarketing, nome atual para prática antiga. Autor de clássicos, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras por ser autor de literatura, causando espécie por ser coisa rara lá. Para os mais novos, dá dica de como escrever: ouvir jazz e apurar os ouvidos para o vão de cada incerteza.

 

 

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