(Crônica publicada no site Vida Breve)
Eis que me preparo para mais uma Festa Literária de Paraty. Com essa, serão 13 de 13 edições. Embora boa parte delas tenha sido a trabalho – e ano passado o trampo foi tão pesado que tombei com estafa –, não posso deixar de reconhecer que é um prazer estar naquela cidadezinha nesses cinco dias de suspensão da descrença.
No geral, o evento em si não me surpreende mais há algumas edições. Parte disso talvez seja pela sensação de que alguns dos meus autores preferidos já (se) foram, como o Millôr Fernandes, Moacyr Scliar e outros mais jovens, ou porque o foco parece ter mudado um pouco da literatura para áreas correlatas, e o filé da coisa começou a virar acompanhamento. Tive sensação parecida na universidade, incluindo mestrado e doutorado, vendo os “estudos culturais” ampliarem tanto as perspectivas que às vezes até se falava de literatura. Mas isso é assunto para outra crônica. (Mentira. O estudos culturais, data venia, dificilmente seriam assunto para uma crônica.) Por último, acho que a Flip principal não me causa mais entusiasmo porque estou nela a trabalho.
Isso me faz lembrar da adolescência, quando trabalhei no McDonald’s: depois de certo tempo lá dentro, não se sente mais aquele cheiro misto da gordura e dos condimentos. O aroma típico que provoca o apetite se transforma em algo normal, estandardizado, e o próprio gosto dos sandubas não desperta tanto as papilas gustativas. Creio que, com a repetição, os nossos sentidos anulem o sentido de novidade.
Algum amigo gaiato me diria: sei como é, você acabou de dar a definição de casamento. Poxa, amigo!
Pelo sim, pelo não, eis que lá se foi mais uma digressão. Mas vamos lá: se por um lado a Flip entrou no calendário de atividades do trabalho, outro aspecto do evento se mantém inalterado. Encontrar e reencontrar amigos por aquelas ruas de pedra é algo que espero o ano inteiro. Apesar do trabalho pesado, sempre sobra um tempo para papear num café ou numa pinga. Creio que esse tempo que aparece é aquele que costumamos perder nos engarrafamentos. Na Flip só se anda a pé, por isso ela é, para a turma que trabalha ou curte literatura, uma pausa na vida conturbada das duas metrópoles que ladeiam Paraty. Nesses dias, a única chance de ser rebocado é caso se beba demais, conduzido até a pousada por amigos um pouco menos tortos e muito compreensivos.
Já escrevi a respeito da amizade flipesca aqui no Vida Breve (http://www.vidabreve.com/a-festa-literaria-do-delfim/#.VY8toXpVhBc), numa crônica sobre o escritor e designer Delfin, camarada que só encontro lá, uma vez por ano, há mais de uma década.
Para esta edição, um grupo de amigos escribas decidiu fazer uma camiseta com a frase A LITERATURA É A MINHA CACHAÇA. Algo tão ridículo quanto legal, por isso entrei na onda. Ok, na verdade eu dei a ideia, um pouco movido pela recusa que a proposta teve no trabalho quando a apresentei como lema para a equipe usar estampada nas camisetas durante a Flip. Acreditaram que associar a instituição a uma bebida alcoólica poderia ferir os bons costumes… Bem, hoje em dia está difícil julgar a flexibilidade alheia diante de metáforas, ainda mais quando é nosso feijão com arroz que está em jogo. De todo modo, como não uso mais uniforme (no McDonald´s tinha, com listras vermelhas e brancas, que chamávamos de zebrão), poderei usar a camisa como pessoa física sem problema.
Mas eis que todo texto pode ser mexido e melhorado. Fred Girauta, poeta de boa cepa e meu parceiro de pingue-pongue, acreditou que os artigos estavam sobrando. “Parecem muletas!”, vociferou, defendendo que LITERATURA É MINHA CACHAÇA soaria mais direto. Tenho alguma implicância com advérbios, mas nada tenho contra artigos, ainda mais os definidos, que fecham o seu substantivo na ideia que se pretende dar a eles. Como tenho andado mais prosador que poeta, reforcei a ideia de que estamos dizendo uma frase, não falando de literatura, no geral, mas daliteratura, no particular, na intimidade que temos com ela. Fred então propôs LITERATURA É CACHAÇA, assim mesmo, pá-pum. Sim, sobraria apenas a metáfora, mas sem subjetividade que o pronome possessivo concedia. Por isso não gostei tanto, voltando ao início. O amigo poeta entrou em modo odara, procurando joia rara, e radicalizou dizendo que todas as letras A estavam sobrando: LITERTUR É MINH CCHÇ, seria para ele uma versão mais contemporânea e instigante ao leitor. Tá legal, camarada.
Nisso os demais escritores entraram na discussão. Rafael Gallo, sensível prosador, apresentou um poema visual em que cachaça e a literatura trocavam de lugar o tempo todo. O Marcos Peres, borgeano espelhadoso, alegou que tanto faz, a cachaça que nos esperava seria a mesma. Pelo adiantado da hora, precisávamos de consenso e decidiu-se utilizar apenas um artigo da frase original. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra – ou nem chus nem bus, adágio que quase ninguém conhece.
E chegamos a LITERATURA É A MINHA CACHAÇA. Essa frase me satisfaz, rende um gole e umas gargalhadas sem moderação entre os amigos. Talvez o melhor da Flip – e vá lá, da vida mesmo – seja isso: encontrar os mais chegados, discutir banalidades e no fim rir disso tudo.