(crônica publicada no site Vida Breve)
Depois de bons dias de treino, o futebol no computador rendeu-me um avassalador e surpreendente 3 a 0 sobre o meu garoto, implementando o respeito já estabelecido fora de campo. E como na nossa tabela pessoal estamos empatados, me parece um sinal de que nossa conexão mais importante permanece forte, porque na verdade não se trata de disputa, mas de diálogo.
Meu garoto é o Pedro, tem nove anos, e me lembro de quando mal sabia falar e já explorava todos os recônditos de um celular, provocando em nós, adultos e senhores dos saberes, um estranhamento que era uma mescla de felicidade e medo. Sentimo-nos seguros quando as manifestações de inteligência se dão com uma intensidade gradativa dentro dos nossos parâmetros, por isso é que um garoto dominar uma sintaxe antes da outra faz parecer que algo está fora de controle.
Não esteve. Ele cresceu, está bem na escola, e curte tanto os longos vídeos sobre Minecraft que pululam no Youtube quanto a boa e velha leitura silenciosa. O mais velho, de treze, vai na mesma onda e ainda cai dentro dos livros de fantasia que estão na moda. Na última Bienal do Livro, aceitou sem cerimônia o convite da Adriana Calcanhotto para se sentar na poltrona com ela e falar poesia numa sessão do café literário. Como eu mediava o papo, fiquei bem orgulhoso, especialmente porque foi a primeira vez em que os jovens foram maioria nesse monstruoso evento, cujo público mais novo sempre foi mais composto pelas visitas escolares.
Gosto de levar os moleques para esses compromissos, que para mim são quase sempre trabalho, mas para eles não é. Nos últimos vinte anos, houve uma proliferação de eventos literários de todos os portes em todo o país, permitindo que autores e leitores se aproximassem cada vez mais. Não creio que isso represente uma mudança radical na valorização do livro como um objeto de desejo no país. A educação para a leitura no Brasil, pelo menos em termos massivos, nunca me parece ter sido uma prioridade ao longo dos últimos séculos, de maneira que não será da noite para o dia que veremos pessoas lendo em todos os cantos, como ocorre na Europa. Ao longo das últimas décadas, saltamos do auditivo para o visual, pulando a fase da leitura e da escrita como fontes privilegiadas de conhecimento.
E essa ideia foi tão bem sedimentada que se criou até um preconceito bizarro em relação à leitura: para muita gente, livro era coisa de gente besta.
Embora tenha diminuído, ainda percebo vestígios dessa resistência em várias situações, como se estivesse clandestino num universo ao qual não deveria pertencer. E mesmo caso seja permitido, para evitar invasão em território alheio, é preciso usar o rótulo literário adequado ao estrato social. Certa vez, uma figura relativamente respeitada no meio acadêmico, na sua boa intenção de dar uma dica, me orientou que não deveria escrever sonetos e outras coisas que gostava na época, e sim fazer hip hop e escrever literatura marginal, para representar a minha classe. E mais uma vez tive de ser marginal a isso, só de ruim.
E tome digressão. Mas outra hora escrevo sobre andar à margem. Voltemos à molecada.
Acredito que boa parte da ideia negativa sobre os livros se diluiu por conta dos eventos literários. Nesses anos em que atuo na área, vi autores de gerações anteriores se adequando às feiras e festas, encontrando com naturalidade seus leitores de todas as faixas etárias. Ao mesmo tempo, acompanhei autores mais novos que se recusaram a encarar o público, seja por timidez ou por ser contra a exposição do escritor, que se transformaria numa figura de palco, para quem seria mais importante fazer números equestres para atrair público do que escrever.
Em meio a esses casos, parece que muitos entendem que as atividades de formação de público leitor se somam a um interesse mais amplo, que pode resultar num retrato cultural melhor em algum tempo. Da Bienal do Livro a uma visita escolar para ler e conversar com jovens (pessoalmente, atividade de que mais gosto), o escritor é hoje parte de uma engrenagem que está apenas começando a girar. Ou pelo menos pode fazer parte, caso decida permanecer no seu canto, pois existem várias possibilidades de se trabalhar um livro sem a presença do autor. Os que são parcial ou totalmente reclusos têm seu espaço garantido: J. D. Salinger ou os nossos Dalton Trevisan e Raduan Nassar que o digam – ou não digam.
De todo modo, a engrenagem está girando e o esforço deve ser geral. Cultivar e cativar leitores deve ser uma obrigação não só do autor, mas de editores, professores, bibliotecários e todos os profissionais ligados direta e indiretamente à área. E pelo menos os escritores jovens, de idade ou de espírito, sabem disso bem.