O livro de Abrahão

Tiago_Silva_VB_31_março_15

 

(crônica publicada no site Vida Breve)

E peregrinou Abraão na terra dos filisteus muitos dias.
Gênesis 21:34

Todos os dias, voltando do trabalho, sou obrigado a fazer algumas paradas.  Acho o tempo uma moeda forte — ainda que instável —, por isso mudei de emprego, trocando parte do salário por três horas a menos no trânsito. Felizmente, moro a poucos quilômetros da labuta, um privilégio numa cidade que, em termos de engarrafamentos, vem se apaulistando numa velocidade cada vez maior. Ou menor, no caso. Nesse trajeto de sete quilômetros, porém, existem pelo menos três locais de breves afunilamentos intransitáveis.

No último deles, surgem pedintes, acrobatas, panfleteiros e vendedores. Todos os dias têm ocorrido assaltos pelas redondezas, de modo que é quase inevitável para os motoristas a desconfiança de quem se aproxima dos carros. Ano passado, no dia em que o Brasil eliminou o Chile da Copa, fui assaltado a mão armada e me levaram o carango com a bandeirinha verde e amarela e todos os demais pertences. Estava com minha família, e ficamos na estrada apavorados, socorridos por um sujeito que estava no bar, cujo carro acabara de ser levado também, pelo mesmo bando. Daí minha cisma de vidros fechados.

Mesmo assim, não pude deixar de notar no vendedor de pipoca. O garoto tem uns dez anos, e carrega os saquinhos vermelhos muito sem jeito, não oferece a ninguém, como se estivesse cheio de vergonha. Em diversas ocasiões, ele fica apenas sentado no meio fio, cabisbaixo, como se a mente o levasse para longe dali.

Comprei algumas vezes dele para tentar dar uma força (e também porque sempre gostei dessa pipoca doce, confesso), mas outro dia a intenção era mesmo entregar um pacote de livros infantis e juvenis para o garoto. Depois de pagar e receber a pipoca, agradeci e perguntei:

— Você gosta de ler?

— O quê? — me respondeu desconfiado.

— Ler, ler assim — fiz o movimento de mudar páginas.

— Ah, ler livro? Gosto, gosto sim.

E entreguei o pacote contendo um pouco de Roberto Louis Stevenson, Ziraldo, Augusto Pessôa, Ninfa Parreiras, Anna Claudia Ramos, Guto Lins, Gloria Kirinus, um meu e outros tantos. Ele olhou para o conteúdo e para mim várias vezes, e demorou uns segundos também para sair da defensiva, como se eu fosse cobrar algo. Sabe-se lá a desconfiança necessária para ser vendedor de rua, na qual ele também precisa se submeter no dia a dia, mantendo automaticamente os vidros da alma fechados…

Ao final, ele apertou minha mão, me apresentei e ele disse o nome:

— Abraão.

E nos despedimos.

Ontem estranhamente não havia engarrafamento. Mas diminuí a velocidade para acenar para ele:

— Fala, Abraão. Tudo bem, meu camarada?

E ele acenou e depois deu um joinha. Dessa vez sorrindo.

Abraão significa “o pai de muitos” em hebraico. O da Bíblia teve que sacrificar seu então único filho sob a ordem de Deus — o que não chegou a ocorrer, pois Isaque foi substituído por um carneiro na última hora. Essa demonstração de fé (ou obediência) teria feito dele o patriarca do cristianismo, judaísmo e islamismo. Aí sim, pai de muitos.

O Abraão daqui, vendedor de pipocas, é um menino que não devia trabalhar tão cedo, mas é provável que as circunstâncias o obriguem a contribuir em casa, trocando o papel de filho pelo de pai.

Não tenho crença de que os livros vão mudar a vida do nosso Abraão, pelo menos diretamente. Mas espero que esses novos companheiros contribuam para que esse garoto, de alguma forma, consiga ler também o mundo. Que não se engarrafe na vida e, fazendo as escolhas certas, escreva e siga a sua própria estrada.

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Assunto crônica

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