Das pequenas mudanças

Tiago_Silva_VB_07_abril_15

(crônica publicada no site Vida Breve)

Acabo de me mudar, de modo que peço perdão à leitora pela pressa com que escrevo. Cada teclada desce com um pouco de poeira ainda, no afã das coisas recém-montadas. E cada frase é produzida por um movimento que desce pelos braços doloridos, passando pelas articulações ainda tensionadas até chegar nas mãos esfoladas após a sequência interminável de descarregamentos.

Por isso é que tento rearrumar aqui as peças desmontadas, leva por leva:

  1. Trata-se da minha 19ª mudança ao longo da vida. Parecem muitas mas o que me alegra é saber que foram gradativamente melhorando. Se as primeiras eram fruto amargo dos perrengues, as últimas foram decorrentes de conquistas.
  2. Os caras do frete precisam e buscam trabalho, mas na hora não querem ter trabalho.
  3. Dia de mudança é parecida com doença: só os verdadeiros amigos e parentes aparecem.
  4. Sempre dizemos “eu me mudei”, quando na verdade o que se muda são os utensílios, o endereço para as malas diretas – e, naturalmente, os móveis propriamente ditos. É possível mudar isso tudo e manter-se exatamente o mesmo indivíduo. Da mesma forma, qualquer um pode, sem sequer ter movido uma palha, tomar um choque de alteridade ou mesmo dizer para si mesmo: eu (me) mudei. Clariceano e esquizofrênico, não sei onde guardar isso.
  5. Se eu tivesse uma empresa de fretes ela se chamaria Transportes Heráclito, e o slogan seria Porque o mais importante na vida é a mudança.
  6. Mas também gostaria de criar uma cerveja: Beba Schopenhauer: o que importa é a vontade.
  7. Um indicador imenso de passagem no tempo são as poeiras que se acumulam atrás dos móveis grandes. Ali o chão é diferente, limpo e virgem, como uma lembrança congelada daquele pedaço de chão antes da nossa chegada. Parece a casa nos dizendo: veja só essa beleza que você tirou de mim.
  8. Já as paredes são menos melancólicas, mas se apegam ao que lhes cobre. O espaço de um quadro fica saudosamente marcado, como se fosse um fantasma da imagem que habitava ali.
  9. É preciso doar coisas, jogar fora tantas outras, ver o que não é realmente necessário depois de um tempo acumulando coisas. Mas é como a foto de Itabira, como dói.
  10. Ter uma biblioteca com uns milhares de livros é uma maravilha até se descobrir que só podemos carregar poucos por vez e ela foi montada em sua maioria no quinto andar sem elevador. Cada um dos sessenta degraus torna o valor de cada obra maior ainda. E não, não os trocaria por um prático e-reader, ainda que use a trabalho. Preciso dos volumes de livros ao meu redor me olhando do silêncio precioso das estantes.
  11. E a pausa para colocar em uma “O cachorrinho Samba”, primeiro livro que li e acho que o mais importante. Não tinha luz na casa onde morava e acompanhar as aventuras ao lado da pequena chama de uma vela tornou a história ainda mais fabulosa. Esse elemento atiça a imaginação, creio: vide as tradições orais em torno de fogueiras. Morava ao lado do Guandu, rio gigante que levava tudo. E depois fomos embora, acho que foi a sexta ou sétima mudança.
  12. Cara de cachorro que caiu da mudança. Já disseram que fiquei assim, certa vez.
  13. De tudo o pior é apertar parafusos, atividade que mais me angustia. O inferno é um lugar onde se precisa, por toda a eternidade, apertar e desapertar um mesmo parafuso mal ajambrado, e com a chave errada.
  14. “Todo o mundo é comporto de mudanças / Tomando sempre novas qualidades.” Os decassílabos heroicos do Camões são legais e gerais, mas me lembro de dois versos mais políticos do Affonso Romano: “Amigos, nada mudou / em essência.” Atual pacas.
  15. Eu mudei e me mudei. Estou casado.

 

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Assunto crônica

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