(crônica publicada no site Vida Breve)
Por esses dias foi comemorado o dia do contador de histórias. (Como as crônicas anteriores se basearam no dia da mulher, dia da poesia e aniversário do Rio de Janeiro, prometo à leitora dar um tempo dessa técnica mui manjada de pescar esta página das terças na efeméride da semana, e assim irei me basear em assuntos mais desimportantes – o que, via de regra, rende melhores textos.)
Mas, como dizia, comemorou-se o dia do contador de histórias. A celebração teve início na Suécia em 1991, primeiro dia da primavera no hemisfério norte, quando se buscou homenagear essa figura importante que existe em todas as culturas. Ignorante, há um tempo pensava que toda efeméride se originava no dia de nascimento ou morte de alguém. Mas uma pesquisa rápida nos informa que nesse dia nasceram o poeta romano Ovídio – tive um professor de latim que vivia repetindo “Ovídio sabia tudo!”, o dramaturgo norueguês, meu semixará, Henrik Ibsen e o poeta paulista Menotti Del Picchia, aquele para quem o crítico Agripino Grieco fez um dos trocadilhos mais redondinhos de que se tem notícia: “Menotti del Picchia, fecha a braguilha do teu nome!”
Aliás, que palavra feia essa tal “efeméride”! Perde apenas para “cônjuge”.
Faço um balão na avenida das digressões e retorno ao assunto: os contadores de histórias. Essa forma de arte é uma das mais relevantes que existem. Ainda que muitos associem a narração oral de histórias a uma prática exclusivamente voltada para o universo infantil, trata-se de uma ação acessível a todas as faixas etárias. Lida com imaginação e memória, dois campos importantes dos nossos processos cognitivos, e uma necessidade que todos temos, talvez inata, de absorver narrativas. Dos mitos contatos em torno de fogueiras crepitantes, passando pelos romances, o cinema e os videogames, parece que precisamos encontrar sempre novas formas de transmitir histórias.
A trabalho, circulei por diversas cidades acompanhando alguns contadores, e as experiências são sempre muito gratificantes. Diferente de uma apresentação teatral, em que a representação é o foco do espetáculo, numa “contação” (parece que o termo não está mais em uso) importante é justamente o texto, a narratividade sugerida pelo contador, cuja performance não pode ser superior ao que é contado. Existem variadas técnicas, com malas, pequenos objetos, tapetes e mesmo livros, mas o principal é a voz narrativa do contador. Por isso muitos têm certo preconceito com essa arte, que é logo quebrado após ouvir uma boa história bem contada.
Em países como a Espanha, o contador de histórias é uma profissão reconhecida. Não por acaso, é a terra de Cervantes, cujos restos mortais foram descobertos há poucos dias. O autor de “D. Quixote” contou a primeira grande história moderna do Ocidente. Naquelas terras, há indivíduos que vivem em itinerâncias apresentando seus cuentos. Nas últimas décadas, essa atividade vem se firmando por aqui também como uma forma de arte autônoma.
E mesmo a publicidade pega carona nessa onda. O termo storytelling é usado quando os caras querem criar uma historinha em torno de determinada marca para que ela pareça mais apetecível ao público consumidor. Há casos, revelados recentemente, em que abusaram desse recurso, inventando histórias mentirosas sobre os seus produtos, como a marca Do bem, cujos sucos viriam de frutas fresquinhas oriundas de uma fazenda de um senhorzinho chamado Francesco. Tudo balela.
O tal storytelling nada tem a ver com a arte de contar histórias. É o extremo oposto. Ninguém sai de uma sessão de narração de histórias querendo comprar coisa alguma – a não ser, quando muito, livros que contem histórias. O que se pretende não é consumir, e sim imaginar, sentir, e experimentar o sabor de uma narrativa. Tudo grátis. Uma propaganda que utiliza esses recursos de forma pouco ética parece, no fundo, distrair a mente do público enquanto mete a mão no bolso dele.
Não estamos na primavera, e sim no outono, a estação em que o Rio de Janeiro fica mais bonito. Boa época para se contar uma história, assim mesmo, em bom português. Como diz o Alcelmo Gois, storytelling é o cacete!