Não somos mais tão jovens

(crônica publicada no site Vida Breve)

Nós somos feitos de tempo — ou, pelo menos, do que vai sobrando ao longo de uma erosão contínua. Essa abstração que nos acompanha por toda a vida se torna mais aguda quando somos tomados pela intuição do instante (peguei esse termo do Gaston Bachelard), muitas vezes em situações extremas, como a perda, uma realização pela qual lutamos ou numa experiência estética. O poético que salta do prosaico.

Ouvir Legião Urbana sempre foi, para mim, um breve mergulho nessa possibilidade. Lembro-me bem das cenas: por volta dos meus dez anos, todos os garotos queriam decorar a letra de “Faroeste caboclo” escrita em folhas de caderno arrancadas ou copiadas em mimeógrafo; depois, todo mundo cantava o amor nos versos de “Monte Castelo”, que citava a Bíblia e Camões, ultrapassando qualquer risco de pieguice; em seguida, a nova fase era cantar “Vento no litoral” diante de uma — tão natural e necessária — desilusão amorosa; por fim, só caberia perguntar, hoje em dia, como é que se diz eu te amo.

Ouvir uma banda querida e fazer com que ela se torne um marcador de páginas da nossa memória é algo muito subjetivo. Cada um tem a sua trajetória, de acordo com os episódios vividos. Mesmo os fatos que levaram Renato Russo a escrever cada uma dessas letras são diferentes e únicos, e isso fica claro nesse novo filme sobre a juventude do roqueiro de Brasília — e mais ainda na ótima biografia O filho da revolução, do jornalista Carlos Marcelo. Mas o interessante é como, por um processo estranhamente metonímico, a obra lírica trata do eu se desdobrando para resumir o mundo. Desse modo, a indignação política, uma dor de separação ou mesmo uma pequena revolta com os pais estavam devidamente contemplados nas letras da Legião Urbana. Com isso, a banda nos pescou como uma tarrafa imensa, contribuindo para a educação sentimental de toda uma geração.

Que mais? Crescemos. A Legião Urbana acabou em 1996, permanecendo com uma juventude eterna representada na morte precoce do seu líder. Mas todos nós crescemos e tentando, meio sem querer, aplicar o que ouvíamos naquelas letras, ora adaptando-as às novas questões, ora procurando outras canções que dessem conta da realidade, como todos fazem. Há alguns anos, enquanto dirigia ouvindo Legião, pensei em fazer uma história inspirada numa das letras. Acabei descobrindo que outros autores também gostariam de fazer isso, resultando numa antologia de contos que não só espelhou o nosso saudosismo geracional como também atraiu muitos leitores bem mais jovens, alguns nascidos depois que a banda acabou.

Nós não somos mais tão jovens. Para a minha galera seminova, a obra da Legião Urbana consegue ser no máximo (e isso já é muito) o elemento catalisador de uma viagem no tempo, uma fotografia na qual está registrado o sorriso da nossa adolescência torta. No entanto, é muito interessante constatar que todas as questões contidas naquelas letras vêm se renovando em novos olhares. Daí que esses movimentos sejam cíclicos, poéticos e pulsantes, ultrapassando qualquer tentativa de se datar o universal tão íntimo que cada um sofre, sente e procura.

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