Category Archives: crônica

Liquidando o casamento

(crônica publicada no site Vida Breve)

Ilustração: Tiago Silva

Ilustração: Tiago Silva

 

“Há pessoas que se casam em comunhão de males.”
Verissimo

 Foi uma vez e já faz tempo. Em nenhuma das vezes em que o meu ônibus passava em frente ao cartório eu costumava reparar nele. Talvez por ser aquele lugar um antro de burocracia, coisa da qual a minha mente procurava distância após o trabalho. No entanto, devido a um acidente ocorrido mais a diante, o trânsito deixou de transitar por uns minutos, e pude então fixar os olhos no que se passava lá fora (olhando da janela do ônibus, temos aquela sensação de Deus só porque ficamos um pouco acima, feito passivos observadores). Não sei se aconteceu somente naquele dia ou se era uma prática rotineira, mas pareceu-me esquisito o cartaz na frente do cartório em que dizia

Promoção da semana: casamento

de R$ 279,00 por R$ 99,90

Era espantoso. Não o fato de o desconto ser imenso, mas a extensa fila que se formava. Agentes matrimoniais — que àquela hora passavam a ser também patrimoniais, por assim dizer — instalaram pequenas bancas na calçada oferecendo seus serviços. Pessoas vinham de todas as partes, acompanhadas ou não, de todos os sexos e opções possíveis, interessadas em aproveitar o preço, já que hoje em dia não se pode perder uma liquidação. Os que vinham sozinhos faziam acordo com outros igualmente solitários, formando casais de aparência, que iriam apenas assinar a papelada e depois seguir cada um para seu lado, felizes por terem aproveitado a oferta. A ocasião faz a promoção.

Quando a fila do cartório superou a da lanchonete fast-food que funcionava ao lado, os funcionários (do cartório, obviamente) se deram conta de que atuavam no segmento do fast-marriage. E o tabelião sorria satisfeito enquanto maquinalmente carimbava sua assinatura nas certidões, que formavam pilhas, enquanto o supervisor dava gritos de incentivo à equipe: “Vamos matar essa fila, galera! Atende o próximo! Vamos bater a metaaaaaaaa!”. Uma menina adiantava os processos na fila e anotava os pedidos: 1) comunhão universal de bens, 2) declaração de união estável, 3) separação parcial de bens ou 4) participação final nos aquestros. E já colocavam uma cartolina com as opções, sobre as quais constava “Peça pelo número!” Um casal recém-formado ali na fila perguntou se era possível montarem um combo especial tirando a sogra, que seria o picles da relação.

Ouvi uma mulher dizendo que já era a terceira vez que voltava ali naquela semana, e outro comentando que iria jogar no cartão em dez vezes. Não sei, creio que esse pessoal estava acumulando um tipo de gordura trans. Mas na calçada também havia umas quatro pessoas que se manifestavam contra esse sistema, e creio que deveriam ser meio abstêmios, pois gritavam o que estava escrito nos cartazes: “Casar é desumano, negócio é ser vegano!”. Misturaram tudo, numa confusão só.

Eu estava no ônibus, só de passagem, com a minha então solteirice convicta e ratificada. Para aproveitar o preço baixo de valeria a pena abrir mão das benesses de uma vida desregrada? Como bom estrategista, fiz incontinenti umas contas e concluí que sairia no prejuízo em médio e longo prazos, e preferi não optar pelo saldão. Tão logo o trânsito estivesse limpo e novamente correndo, um dos casais subiu no ônibus, sentando-se no banco à frente do meu. Alguns minutos depois começavam a discutir e até pipocaram tapas, vindos de ambas as partes.

Mas quando o trânsito parou na outra esquina, vi como funcionam as leis de mercado. Uns advogados corriam descalços (mas com ternos) entre os carros, distribuindo seus cartões e gritando “Desquite, separação, divórcio, pensão! É pra acabar e eu ir pra casa!”. E afinal não sei se eram também funcionários do cartório, fazendo — com o perdão do trocadilho — venda casada.

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Assunto crônica

FLICODUT – Festa Literária de Contos com até Duzentos Toques

(crônica publicada no site Vida Breve)

Ilustração: Tiago Silva

Ilustração: Tiago Silva

 

Nesses tempos em que proliferam os eventos de livro e literatura, abrem-se várias novas vertentes para os diferentes tipos de textos e públicos. Imaginem que, antes do twitter, dos hobbits e de Lilliput, se realizasse um festival em que só participariam autores que escrevem com, no máximo, 200 toques. Fizemos um apanhado deles, e reparem que nenhum atinge esse limite.

METAFÍSICA COM SAL E MANTEIGA
Manfredo tinha desdém pelo microondas, mas quando ouviu aquele 199º “toc” surdo da máquina, espantou-se com um projétil que fugira do saco: “A pipoca é o anjo do milho”, pensou, pegando o refri.

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BIS
A banda já havia tocado 199 músicas, mas a plateia queria mais e mais. O guitarrista ensanguentado perguntou ao vocalista afônico se deveria continuar, no que ouviu: “Toque só mais uma”.

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O ETERNO RETORNO
Eustáquio sempre terminava e voltava com Sula. Certa vez não. Enquanto dava a 199ª batida na porta da mulher, o toque-toque lhe deu a certeza da inevitável solidão e foi tomar um sorvete, seu último.

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ANÁLISE SINTÉTICA
Depois de muito evitar, no 199º surto psicótico resolveu se tratar e, assim que entrou e saiu e entrou de novo pela porta do consultório várias vezes, foi enfim diagnosticado com T.O.C.

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UMA RAPIDINHA
A atendente de telemarketing deixou o cliente esperando e foi na sala do chefe, de quem era amante. E deu no que deu, a toque de caixa. Durou 199 segundos.

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THE END
Fim de namoro, e por tanto se contorcer de si que se lançou no silêncio atávico do 199º soluço, sem mais lacrimejar: terminado o estoque, virou ex-toque, e seguiu em frente.

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INDICADORES ECONÔMICOS
Ao visitar o proctologista pela 199ª vez para o exame de toque, Amâncio ouviu do Dr.: “Mais uma e você é quem entra para os anais da medicina”.

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Assunto crônica

E-mail a um jovem poeta

crônica publicada no site Vida Breve.

Ilustração: Rafa Camargo

Prezado,
Recebi sua mensagem. Também vi que estava em DM no Twitter, na mensagem de Facebook — e colado no meu mural —, além de ter sido enviada para o meu e-mail de trabalho. Surpreendeu-me ter chegado também uma versão impressa pelo método tradicional. Uma vez que sou apenas um dos cinco escritores aqui do meu prédio, certifiquei-me que o pacote não havia sido entregue no apartamento errado. Ainda que eu não disponha de tanta credibilidade assim, fico bastante grato pela consideração e expectativa em torno da minha leitura. Lembrei-me de uma frase do Quintana, mais ou menos como “todo mundo deveria escrever poesia contanto que não venha me mostrar”, o que de fato é uma crueldade em relação a quem está começando a trilhar a densa mata fechada que é a literatura.

 

Mas vamos lá. Muito me admira sua tentativa de traduzir em versos os seus conflitos diante do mundo e das coisas. De ampliar sua percepção da realidade em poesia e buscar reconstruir o mundo dando sentido ao que não possui, que é a vida etc. Todavia, tenho algumas recomendações a fazer após leitura criteriosa e imparcial, e por desorganização minha decidi separar por tópicos:

1) O prefácio de 27 páginas em que você justifica o motivo do livro e oferece uma explicação para cada poema me assustou um pouco. Mas fui pegar um café e continuei a leitura. Acho o título Prefácio Interessantérrimo meio pretensioso.

2) Não sei bem como dizer, mas poesia não é onanismo,tampouco terapia. Parece que o grande objetivo da autoajuda é vender livros de autoajuda. Poxa, rapaz, transferir os seus problemas para o leitor é um crime cuja punição deveria ser umas chibatadas com galhos finos de goiabeira. Ele já tem coisas demais para resolver, não precisa ser importunado com descrições pífias acerca das suas frustrações, medos e demais infecções da alma. Você não precisa de crítica,amigo, mas de diagnóstico.

3) No prefácio você disse que jamais lê poesia para não sofrer a tal angústia da influência, pois o poema “brota em minh’alma sem contaminação com plantios alheios”. É provável que, além de diagnóstico, seu problema também seja de cultivo, e nesses casos sua cuca precise urgente de uma reforma agrária.

4) Posso estar enganado, mas parece que todos os poemas em que há texto foram copiados das suas conversas eletrônicas com uma ex-namorada. Não é que não pode, mas algumas coisas da sua intimidade eu não precisaria saber e não transcendem nem de longe o terreno de um monte de DR. Achei os decassílabos “vai encontrar alguém que te mereça”, “o problema sou eu, não é você” e “agora vai ser tudo diferente”, mas foram intencionais, a fim de dar forma fixa a uma relação esfacelada?

5) Várias páginas estão em branco, dezenas delas. Voltei ao prefácio e parece que a ideia era justamente reproduzir uma experiência de nihilismo e fazer o leitor “refletir”. Num momento de distração, meu filho acabou pegando o livro e rabiscou um monte de coisas ali e minha maior dúvida está entre brigar com ele ou aclamá-lo um prodígio da arte de vanguarda.

6) Por falar nisso, não creio que seja interessante o fato de um poema ser composto por um jato de urina sobre a página e o outro uma amostra de dejeção colada na folha. Os títulos “Presente para o mundo nº 1” e “nº 2” soam engraçados, mas a mim parece mau gosto — e mau cheiro. Se soubesse eu teria lido só o pdf…

7) Você vomitou num dos poemas? Foi acidente ou proposital? Não encontrei referências no prefácio, o que talvez me leve a fazer uma superinterpretação. Numa das cartas do Sabino para a Clarice ele dizia, acerca da necessidade de retratar as angústias apesar da pouca estrada, “vomitar o que, se não comemos?”. Você leu isso e levou ao pé da letra? E como resolveu isso (e o item anterior) em toda a tiragem?

8) Segundo o prefácio, todos os textos passaram pelo crivo do evento de poesia que você frequenta no bar, aplaudidos e consagrados numa noite linda. Mas lembre-se, nesse tipo de lugar eles vendem bebida alcoólica, e já vi muitos comentando na sinceridade do banheiro: achei um porre. Isso tudo pode comprometer um pouco o juízo durante o karaokê poético, e não sei se é bom levar tão a sério. O melhor é ver se a cerveja está bem gelada.

9) Valeu o esforço de inserir um tipo de ensaio no final do livro. Tem coisas interessantes, mas não sei, o poema “Operário em construção” pouco tem a ver com o Concretismo e sua tese edificante não se sustenta — sem trocadilho.

10) O poema epigramático “cu não leva acento/ assento leva cu” é um dístico até engraçado e causa certo espanto. Mas fica por ali mesmo, um ó.

Por fim, não sei se era esse tipo de leitura que você buscou ao me apresentar esse volume de poemas. Não sei dizer se Pepitas frugais (sugiro mudar o título do livro) vai ter uma boa carreira, mas o importante é continuar tentando seguir em frente. Abração.

 

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Assunto crônica

UFC – Confrontos inimagináveis

 

(crônica publicada no site Vida Breve

Ilustração: Rafa Camargo

Quando passa o antigo vale-tudo e os camaradas começam a se estapear, trocando golpes que desafiam as leis fundamentais da ternura e fazem cair por terra os recados que o papa deixou na recente visita ao Brasil (em Varginha, o Sumo Pontífice fez a maior revelação da Igreja até hoje: “vocês não estão sozinhos”, para o gáudio dos ufólogos ortodoxos e praticantes), fico pensando em coisas que não fazem muito sentido a não ser aqui nesta crônica. Será que em algum tempo esse octógono irá se tornar a grande arena de confrontos, resumindo os conflitos ideológicos e embates acadêmicos, políticos e existenciais a um ringue de porradarias comendo soltas? Num exercício mais ou menos exato de futurologia, tento imaginar algumas lutas que caberiam numa versão Premium do UFC, e que desfecho teriam.

 

Nelson Rodrigues X Lei Maria da Penha

Nelsão já chega batendo pra dizer quem manda, alegando que nem todas as mulheres gostam de apanhar, só as normais. Penha se defende com sutiãs queimados e argumentação segundo a qual o machismo é coisa de gerações tacanhas e ultrapassadas, oferecendo ainda um vale-curso de metrossexual para o dramaturgo e seus personagens canalhas, que imediatamente vaiam da plateia. Rodrigues se desvia dizendo que tudo não passa de inveja do pênis, especialmente ao se poder urinar de pé. Mas antes de revidar leva um safanão de Penha, que treinou MMA com cantoras de MPB decididas a mostrar quem é o sexo frágil da vez. Nelson cai desfalecido cantando marchinhas, sob os olhares de repreensão da Moral Burguesa, que seria a próxima adversária.

Eike Batista X Humildade

Antes de Eike entrar no octógono, vários seguranças se certificaram de bater muito na Humildade. Filho de pai rico, pai de filho idem, chama o seu moleque para ajudar na luta, e o garoto de nobreza nórdica já chega atropelando. Humildade tenta mostrar que ali estão em condições iguais, mas com uma gargalhada um advogado joga no ringue uma nova análise da perícia indicando que o bilionário avança nos negócios em velocidade permitida.  O ricaço tenta fazer graça dizendo que nem tudo é dinheiro, mas tudo é a falta de dinheiro, quando Humildade tenta se defender com um carnê do Baú da Felicidade e saudade das lojas Tamacavi. Tudo parece indicar a vitória de Eike, quando ele enfim tropeça na própria soberba e os investidores saem de cena, levando o empresário de cara no chão, onde havia um X desenhado.

Mídia Ninja X Fanzineiros Clássicos

Eles são rápidos e da concentração há um link para quem quiser assistir aos treinamentos em tempo real. Mas ao entrar no octógono os ninjas são recebidos pelos fanzineiros, vestidos de samurais, que os atacam com tipos móveis. Os ninjas lançam mão de uma nota preta conseguida por um edital público, oferecendo uma porrada de infraestrutura para os coroas se atualizarem, aos gritos de que o wi-fi é grátis. Os zineiros gastam logo a grana em xerox reduzidas e montagens toscas, atirando os jornalecos simples e afiados nos novos media man, que desconheciam as técnicas de luta da imprensa alternativa, e assim tonteiam. Os samurais da mídia tentam salvaguardar sua honra afirmando que ninguém vai lhes passar o beiço, e assim derrubam os ninjas, que partem para Brasília a fim de atirar shurikens num movimento chamado Fora do Eixão.

Casamento X Super Mario

Sob o peso institucional e anos de tradição, Casamento entra no octógono comprometido. As mulheres da plateia clamam por ele — nem tanto as que torciam pela Lei Maria da Penha da outra luta — e jogam buquês dentro da arena, fortalecendo-o diante do adversário. Mario vem de uma vitória fácil sobre Tese de Doutorado, e entrou na luta aos saltos, estimulado pela popularização entre os muitos geeks presentes, que apresentavam estudos comprovando que a próxima geração de videogames já pode com folga vencer o Casamento e ocupar o lugar no pódio. O encanador de voz fina come um cogumelo alucinógeno e, doidão, cresce para cima do oponente, que esquiva pedindo trégua e promessas de convívio tranquilo e harmonioso. Super Mario entra pelo cano e depois da luta busca seu espaço dentro do Casamento.

IMPA X Quadradinho de oito

Poucos acreditaram quando o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada aceitou entrar na contenda contra o Quadradinho de oito. Os rapazes entram no octógono pensando em dar a resposta de 64 e voltar ao treino da Olimpíada de Matemática, mas são surpreendidos pelas moças se contorcendo no chão com as partes pudentas viradas para cima. IMPA reage a partir de técnicas desenvolvidas em pesquisas de Onanotecnologia, prestando tributos ao solitário vício da autoajuda. Quadradinho é poderosa e golpeia com um consertesa, um nada haver e mais uma série inesgotável de barbarismos e solecismos. Mas IMPA é calculista e senta dois catetos no Quadradinho, cuja hipotenusa fica caída e joga a toalha, saindo do ringue postando no Face: #chatiada.

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Assunto crônica

Vade-mécum do genuíno texto acadêmico

(crônica publicada no site Vida Breve.)

É dúvida constante da maioria dos alunos o modo como escrever a sua monografia de fim de curso, o famoso TCC. Na verdade, sempre existe algo mais interessante para se fazer, empurra-se a pesquisa com a barriga, de modo que toda a preocupação se concentra na última semana, resultando num trabalho mixuruca feito às pressas. Para evitar que essa contingência impeça a aquisição do trofélico diploma, segue em primeira mão uma seleta de informações, à guisa de auxílio, encontráveis na maior parte dos trabalhos bem-sucedidos.

1) Do tema:

– Definitivamente, é possível desenvolver qualquer ideia sob a forma de texto. Uma palavra vale mais que mil imagens.

– Ainda assim, é preferível repetir os mesmos temas dos medalhões das respectivas áreas. Do contrário, corre-se o risco de se ter o trabalho anulado, ou lido com indiferença.

– Assuntos contemporâneos, polêmicos e instigantes são recomendáveis apenas àqueles que pretendem mudar de curso antes da formatura.

– Não há dúvida de que a melhor escolha é feita da “lista de temas”, fornecida pelo professor orientador. A incapacidade do aluno sempre é prevista, além do que é preciso oxigenar um pouco o projeto de pesquisa para o qual o mestre ganha uma bolsa do CNPq.

2) Do título:

– Tornou-se praxe a utilização de palavras esdrúxulas como título, seguidas de um subtítulo comportado, indicando que despojamento e informalidade não podem ultrapassar a primeira página. Aliás, ficam na primeira linha.

– Exemplos: “TE ESCONJURO, MIZIFIO: breve estudo sobre o falar afro-baiano”; “ATÉ LAMBI O PRATO: apontamentos para uma práxis da gula infanto-juvenil”; “DEIXA QUE EU DEIXO: considerações acerca da organização político-partidária brasileira”.

– É de bom tom o uso de termos que sugiram metáforas indecifráveis.

– A ausência de título só pode ocorrer se o trabalho contiver algum teor niilista. Desde que haja uma nota — também em branco — explicando a autorreferência.

– É bom saber que o título será o máximo que muitos lerão do trabalho.

3) Da epígrafe:

– Toda epígrafe é melhor vista se estiver em língua estrangeira, com atenção naquela especificamente não dominada pela banca.

– Uma citação que não tenha relação alguma com o trabalho pode atestar uma suposta sacação inteligente.

– Duas epígrafes sempre são melhores que uma, principalmente se os autores estiverem separados por vários séculos e não houver relação alguma entre elas.

– Até hoje ninguém foi reprovado por inventar uma epígrafe perfeita ao trabalho e atribuí-la a um Nobel.

4) Dos agradecimentos:

– Agradecer a um número grande de pessoas pode dar a impressão de que o trabalho foi extremamente dispendioso.

– Na lista, o professor orientador deve vir por último, em negrito de preferência.

– Prestar agradecimento a indivíduos cuja vida não está de forma alguma ligada ao trabalho, como o jornaleiro ou o entregador da drogaria, sugere que a pesquisa de campo foi deveras ampla.

– Esquecer-se dos agradecimentos significa que pais, amigos e professores pouco ajudaram na produção do trabalho, o que é verdade na maioria dos casos mas não pega bem explicitar.

5) Da confecção textual:

– É imprescindível que a construção textual se dê pela balanceada alternância entre citações e paráfrases.

– Não se escreve com dez palavras claras o que se pode escrever com vinte palavras empoladamente monstruosas.

– Errado: “E assim concluímos que o cigarro prejudica a saúde”; certo: “Destarte, porventura apresenta-se o cancro ao praticante contumaz do ato fumarento na proporção direta da cumulação do malefício supracitado num período cabível de formação nodulosa no organismo desse mesmo indivíduo, cerceando-lhe o bem-estar natural a médio ou longo prazo”.

– Fica extremamente proibida qualquer manifestação de criatividade. Para isso existem os grandes nomes.

– Aumentar consideravelmente o tamanho da fonte faz o texto ficar bem mais longo, infração detectada somente por especialistas.

6) Das notas de rodapé:

– As melhores notas de rodapé são aquelas que contêm um enorme bloco de texto, causando/acentuando miopia pela prolongada leitura de fontes tão pequenininhas.

– Deve-se lançar mão de uma nota de rodapé para distrair o leitor quando o trecho for por demais insípido, fazendo-o sair do texto principal mas sem abandonar a obra.

– Termos latinos já são incompreensíveis em si, e nas notas é possível usá-los de forma abreviada, gerando ainda mais confusão e soberba.

– O fato é que ninguém lê as notas.

7) Da bibliografia:

– A bibliografia é analisada não pela seleção criteriosa de material de pesquisa, mas por volume de laudas.

– Convém dar preferência a obras de difícil acesso. Tão melhor se algumas inexistirem.

– Sobrenomes exóticos e de muitas consoantes sempre causam boa impressão, principalmente se o autor for indiano, israelita ou romeno. Sem conseguir ler o nome, o leitor passará para a próxima referência e sequer notará que se trata de uma obra de outra área.

– Soa bem ostentar o domínio de várias línguas pela utilização de obras estrangeiras originais, mesmo quando há boas traduções na livraria do shopping.

LEMBRETE: copiar todo o trabalho do Google é um grande risco. Além de constituir crime de plágio e falsidade ideológica, os professores estão mais plugados. Sei de vários que, inclusive, estão enfim abrindo contas no Orkut.

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Assunto crônica

Oito finais para oito livros não escritos

(crônica publicada no site Vida Breve.)

Ilustração: Rafa Camargo

Uma das grandes vantagens da literatura é que, assim como Deus e a nota de cem reais, você até pensa que existe, mas não vê. E se ela não existe, só lhe resta ser inventada — em psicanálise sintática, por exemplo, existe um tal sujeito inexistente que é o terror da garotada na sexta série. Nietzsche, um dos grandes humoristas que já pisaram por essas terras (“Eu só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar”), nos legou os seus famosos prefácios de cinco livros nunca escritos. E se encontrássemos, num arquivo empoeirado e esquecido, os finais de livros que foram rejeitados pelos respectivos autores, seja por preguiça de escrever tudo que veio antes, seja porque não passaram de um exercício barato de estilo, feito flexões e polichinelos do vernáculo?

 

ETERNO DESCALABRO, de Lúcio Guedes Andrada (1838-1887)

“Rosélia despediu-se, trêmula e revigorada. Após fechar a porta e virar a chave, ouviu a sibila que entoava docemente o canto da ausência recém-nascida. E então, na solidão temporã dos trinta e sete anos, teve o amor descortinado por uma dança irreversível, de arrebatamento, sob cujas meras sombras irrompia um clarão de maio. Sabia que era tarde, olhou o dorso das mãos, com um sorriso tímido e resignado. O silêncio permitiu o som longínquo do portão que se fechava para sempre. Foi então que Rosélia abriu a janela, olhou para baixo e se tornou parte daquela tarde invisível.”

NEM CHUS NEM BUS, de Célia Gomes Correas (1969- )

“Sifu, mifu, nosfu. A situação que deixaria Selminha roxa de constrangimento não resultou num mal em definitivo, como planejáramos. Pelo contrário, resgatou algo do seu caráter perante a multidão, atraindo os caça-colunáveis feito pivete com detergente em para-brisas no sinal. Sem saber para onde ir, o que fazer, o que despir (nossas expectativas minguaram), restou-nos dar uma risada coletiva e cair na diversão com os seguranças da festa. Todos genéricos, me garantiram. Eu quero é mais.”

CONTOS PROLONGADOS DA MARQUESA SHEILA ZADE, de Duínio Sales Ferreira (1971- )

“E foi por aquele fio que Dé cantou à moda de Lionel Richie ‘All nylon!’ por toda a noite. Tinha a alma de sonhos povoada, e a alma de sonhos povoada tinham também as moças que se aproximavam lânguidas e esmerosas, inebriadas, hipnotizadas, antissereias que só. No que uma pulsão morna lhes sussurrava no instigo: ‘ou dá ou dé’, coisa assim dessa marca. O mancebo se esticava, labirintoso de perdição, enquanto lá fora a melodia subia ao ralo do céu, etérea, tendo a noite oferecido um ensaio de lua absolutamente destituído de quaquaragens.”

NOVES FORA: NADA, de Zulpério Gama (1952 – )

“Sem perspectiva, restou a Tirésias caminhar às cegas por uma Outro Preto irreconhecível. Tateava descendo a Rua do Meio, cheirava o escuro de si e arquitetava secretamente onde não pisar. Distraiu-se com um Beto Guedes inédito que alguém cantarolava na distância, e rolou, decerto, no ritmo absorto dos paralelepípedos, até ser amparado por estudantes profissionais, cujo líder lhe apresentou o valor da República. ‘Noventa contos por mês’, ouviu de um, ‘mas só tem um banheiro’. O malogro lhe assaltara de insurgência: ‘que país é este?’, perguntou para si mesmo com um soluço.”

FARDA MAS NÃO TALHA, de Júlia Mendes Quirino (1947- )

“Não falei, bebé? Depois disso tudo, você me olha assim, grandão por fora, fraquelo por dentro. Milico, pede penico! Marcha, papel, cabeça de soldado. Quiedê meu país, hein? Levaram casidiquê? Fala, reco. Se vamos começar te arrancando as unhas, dando choque nos culhões, ou impalando com o cabo da vassoura? Sem peta, bebé, que não sou de escangalhar supresas. Salve o lindo peidão da esperança… canta comigo! Engrossa essa voz, seu biltre, mequetrefe, saporé, falpórrias, sagodes, safardana, zagorro, mucufa. Ordinário, marche! Para trás, para trás!”

O CANTO DO MELRO ALBINO, de Francisco de Aguirre (1903-1984)

“Sobre as nossas próprias camadas de dubiedade insurgiram novos cantos, prantos e quetais, de tal modo cimentados pela vida rupestre que o tédio medrou em definitivo. A lembrança de Maria Cecília já era uma sombra distante naqueles tempos ralos, por isso retornei pela última vez ao pequeno monte onde tudo começou. Deitei sobre a árvore: a mesma que, na infância, jurávamos possuir na sua copa um ninho de melros albinos, modificados desde o ovo por aquele arremedo de Ku Klux Kan que nos assustava. Nunca mais fui o mesmo depois daquele episódio, tendo permanecido num tipo moderado de equilíbrio cromático neste meu coração acinzentado pelas horas. A vida é na espera.”

MULHER TÃO QUASE ATLÂNTICA , de Talmo Régis de Farias (1948- )

“O céu traduzido num punhado de tristeza. E por isso mesmo infernal — éramos ainda os doze garotos que se remexiam nos porões de uma adolescência em busca de salvação. Hein? Sim, maior, bem mais cerceadora que as escuridões de uma ditadura abstrata, um sistema, uma coisa ampla e inefável que V. S.ª ainda ousa chamar de sociedade, o mundo, o coletivo, o outro. Só vejo você, cara senhora, só víamos você, e assim nos constituíamos: por isso roubamos as suas divícias e fugimos para sempre, antes que você pudesse nos asfixiar docemente com o seu amor vampiro.”

X-TUDO, de Zero Bill (Enilson Alves Barbosa, 1982- )

“eoeoeoeo samanta chupou bala de menta e se sentiu demente sem mente nem semente e achou que era hora de ir pra casa porque o anselmo seu cavaleiro sem elmo disse vaza e ela então foi mas no meio do caminho tinha uma pedra para pedro paramo e ela chutou a pedra eoeoeo é pau é pedra é foice é martelo marcelo marmelo e ela se sentiu um chicken mc nuggets que sonhava ser big mac mas era isso mesmo só um pedaço de galinha cantando tô ficando empanadinha tô ficando empanadinha eoeoeo anselmo tinha outras mas sei lá ela também tava feito bolinha de pinball batendo aqui e ali e sabia que entre um pino e outro ia acabar mesmo no buraco e nem adiantava chorar com a tatiana porque ela também devia estar andando com o anselmo que no outro dia ela mudou as letras no caderno e escreveu molensa malenso samelno e riu porque esses nomes não existem mas ele existia de verdade eoeoeoeo e a samanta atravessou a rua sem olhar pros lados que se foda se um carro me pegar mas nada e depois chorou dizendo que nem pra acidente ela servia”

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Assunto crônica

Ai de ti, Barra da Tijuca!

 

(crônica publicada no site Vida Breve)

Ilustração: Rafa Camargo

No final da década de 50 fez muito sucesso uma crônica do mestre Rubem Braga, intitulada “Ai de ti, Copacabana!”, na qual o bairro teria um fim apocalíptico. A Princesinha do Mar não foi destruída, mas sua decadência hoje evidente confere ao texto um tom semiprofético. Como dizem que a Barra da Tijuca equivale à Copacabana dos anos dourados, e por conta do centenário de nascimento do velho Braga, fica aqui registrada também uma crônica equivalente, guardadas as devidas proporções (tanto dos bairros quanto dos cronistas).

 

1. Ai de ti, Barra da Tijuca, pois tua orla em forma de sorriso parece uma boca chorosa quando vista do oceano.

2. Ai de ti, Barra da Tijuca, porque não tens o glamour daquela que queres imitar, nem a grandiosidade original dos seus habitantes.

3. Ai de ti, Barra da Tijuca, porque tua praia revoltosa irá consumir as ruas, e as ondas que tanto divertem os surfistas serão como dentes impetuosos.

4. E tudo quanto foi aterrado tornará a ser domínio de Iemanjá, pois o mar vai ceder seu corpo à lagoa de Marapendi, e ambos se abraçarão para reconquistar o espaço que lhes pertence.

5. E os teus emergentes virão à tona, estáticos, tal como as dejeções dos teus canais de esgotos irregulares.

6. Grandes são teus shoppings, mas cartão de crédito algum pagará a isenção das águas, que os tomarão totalmente despreocupadas com as aparências.

7. Ai daqueles que, bêbados, cruzam as Américas e a Sernambetiba nos seus carros importados, porque pensarão ser delírio quando virem as pistas alagarem-se, e nesse momento de nada valerão os motores possantes.

8. E os pampos nadarão nas casas dos condomínios, sem terem de se identificar na portaria sob os holofotes dos porteiros engravatados.

9. E serão em vão os esforços dos empreendedores em transformar, às pressas, o desencanto em forma de abandono da Terra Encantada num parque de águas, pois essas mesmas pessoas serão levadas junto com as instalações.

10. Ai de ti, Barra da Tijuca, porque os teus altos prédios com nomes em inglês se esfacelarão; já recebeste o aviso, mas ignoraste, e por isso tais estruturas retornarão do pó ao pó, da areia à areia.

11. E após a reconquista das águas nenhum idioma se imporá ante olhos e ouvidos impressionáveis, pois na calmaria submersa reinará o silêncio, a mais universal das línguas.

12. E tua Estátua da Liberdade anunciando promoções revelar-se-á também um monumento descartável, tendo o corpo dissolvido ao breve toque da comoção fluida.

13. Pois grande tem sido a tua vaidade, Barra da Tijuca; por isso teus poucos refugiados procurarão com humildade abrigo na Cidade de Deus e no Rio das Pedras, e estes os acolherão.

14.Malha artificialmente em academias, ri com luxúria pela noite enquanto tens tempo, bronzeia-te do Quebra-Mar à Pedra da Macumba, porque em breve conhecerás a devastação e a fúria. Curte o teu último point, Barra da Tijuca!

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Assunto crônica

PERCA TOTAL! — Um jornal com princípio, meio e fim

(crônica publicada no site Vida Breve)

Ilustração: Rafa Camargo

EDITORIAL

Nosso cartaz nas manifestações: PELA IDEALIZAÇÃO DOS PAPÉIS E DESPAPELIZAÇÃO DAS IDEIAS.

OPINIÃO

NÃO ME CHAME DE CHUCHU, ME CHAME DE TOMATE                                                  

Não é de hoje que indivíduos têm o hábito de se referir a outrem por “chuchu”, de forma terna. Ora, o que é o chuchu? Ele não passa de um legume sem personalidade, um maria-vai-com-as-outras, que pega o gosto de qualquer outra coisa que se apresente ao lado. Camarão, cereja, água sanitária, tudo agrada o chuchu. Ele não se impõe enquanto sabor. Sim, há os defensores, argumentando que ele, por ser muito aquoso, ajuda na digestão e é melhor do que comer bebendo água. Mas até nisso a melancia dá de dez. Linguisticamente, soa agradável chamar alguém por duas sílabas iguais (mamãe, papai, titia, Iaiá etc.), daí o sucesso do chuchu como apelido. A questão, no entanto, é o que ele significa, o que pode haver por trás de um vocativo carinhoso. Portanto, cuidado! Ao ser chamado por chuchu, podem muito bem estar dizendo que você não passa de um ser insípido, sem graça e inexpressivo.

CRÍTICA CULTURAL

Performáticos de toda ordem: a maior experiência não é o choque. É o choco.

PROJETOS CULTURAIS RECUSADOS PELA ROUANET

O Projeto Van Gogh, desenvolvido pela ONG Ler-o-lero, era baseado na distribuição de orelhas de livros para semialfabetizados (é como o Governo chama os semianalfabetos). A intenção foi permitir que as orelhas fossem devoradas para estimular a pseudointelectualidade na choldra, visto que os indivíduos bem-sucedidos nunca leem o miolo das obras que alegam conhecer. Equivocado desde o início, o projeto chegou ao fundo do poço quando recebeu comunicado oficial do SUS, incapaz de atender as crianças que chegavam engasgadas com as orelhas de Harry Potter.

COMPORTAMENTO

Pessoas afáveis ao extremo, cuja empatia as impele a falar dando leves toques no interlocutor; indivíduos mui atenciosos que não hesitam em conversar gritando como se o outro estivesse a vários metros; militantes do pernosticismo que falam alto demais para que terceiros ouçam; entusiastas do infinito que beijam mais que duas vezes; amorecos efervescentes de carinho dispostos a tudo para convencer do que quer que seja; criaturas de seda bem intencionadas o suficiente para compartilhar perdigotos; missionários da ternura para quem não há limites entre o próprio corpo e o alheio; gaiatos intermitentes seguidores da veia performática, ainda que para uma comunicação simples; peripatéticos da subjetividade que sobrevivem à revelia do bom senso.

BREAKING NEWS: PROFESSOR DIABÉTICO ATINGE A LIVRE-DOCÊNCIA

“Não foi necessário fazer * doce para alcançar essa vitória”, gaba-se o mestre Glicério, cuja mulher, a também professora Dulcina, vem buscando essa mesma conquista para o próximo Cosme e Damião. A filha do casal, Mel, se emocionou com as fotos do Sebastião Salgado e chorou soro caseiro.

AUTOAJUDA: ALÔ, VOCÊ, QUE VIVE NO OSTRACISMO

Liga não. Mais dia menos dia, quando toda a peixada já estiver moscando nos cascalhos ou definhando inerte no verdão do lodo, você corre sério risco de renascer em pérola e dar uma banana pros que estão boiando. Nem sempre é ruim ficar de molho.

FICÇÃO TWITTER — UM CONTO COM ATÉ 150 TOQUES

INDICADOR ANALÓGICO E DIGITAL — Ao visitar o proctologista pela 149ª vez, Amâncio ouviu do Dr.: “Mais uma e é você que entra para os anais da Medicina”.

HORA DO PROVÉRBIO:

1) Se muito gogó fosse garantia sabiá não virava emplastro.

2) De quiabo em quiabo é que floresce o nabo.

3) Quem nasceu pra rodízio nunca chega à la carte.

ANUNCIANTES:

Não morra na praia. Use NORMANDIA surf wear.

Beba SCHOPENHAUER — o que importa é a vontade. Filosofia de boteco, a gente vê por aqui.

Transportes HERÁCLITO — porque a única coisa constante na vida é a mudança. Desde 500 a.C. entre lá e cá.

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A festa literária do Delfin

(crônica publicada no site Vida Breve)

Estive em todas as edições da Festa Literária de Paraty. Na maioria, vim por compromissos de trabalho, e em algumas para participar de programações paralelas como autor. Mas desta vez, depois de dez anos, meu objetivo retornou ao privilégio único e leve da primeira edição: não fazer nada. Graças a Deus.

O evento sempre teve esse aspecto, devido ao cenário histórico da cidade, uma ilha tranquila situada entre duas metrópoles engarrafadas. Muito já foi dito sobre isso, e cada um que esteve aqui várias vezes guarda lembranças e causos únicos, num amontoado de micro-histórias de todos os tipos e sabores. Tenho minhas cenas preferidas. No primeiro ano, com o Eric Hobsbawn tentando se equilibrar nas ruas de pedras, outra em que o Salman Rushdie desandou a sambar numa festa, Adélia Prado fazendo todo o evento chorar com seus poemas, os depoimentos belíssimos dos saudosos Millôr Fernandes e Moacyr Scliar, além das aulas cheias de clareza e encanto de Antonio Candido e Cleonice Berardinelli. Além disso tudo, foi interessante ver escritores amigos que surgiram nesse período e se estabeleceram na cena literária, hoje publicados em outros países e com suas carreiras a todo vapor.

De certa forma, as pausas do meio do ano para vir aqui também funcionam como um ponto de costura para mim. Foi tomando um café que conheci alguns editores que arriscaram me publicar. Escrevi uns poemas do primeiro livro — A musa diluída — numa mesa de poesia, a partir de algo que a Claudia Roquette-Pinto falava, e outros numa mesa do restaurante em Cunha. (As mesas dos bares acabam sendo as mais produtivas: na primeira Flip, estava com os amigos Marcelo Moutinho e Rosana Lobo no Coupé, cujas portas foram fechadas e os funcionários se mandaram, nos abandonando do lado de fora sem nem cobrarem a conta.) Voltando aos poemas: ontem, anos depois disso, fui abordado por um jovem estudante de Letras da USP que fez monografia sobre esse livro, e senti que um ciclo bastante feliz se completou.

Mas acima de tudo, a Flip é o lugar dos encontros e reencontros entre a turma das letras. Tenho alguns amigos que conheci e praticamente só encontro aqui, e é sempre como se os tivesse visto na semana passada. Parece que nessa espécie de suspensão da descrença se cria um tempo que é interrompido quando acaba o evento e volta a correr normalmente um ano depois. Na primeira ou segunda vez conheci o Delfin, escritor e designer gráfico de Sampa, que anunciava ali na praça os livros das Edições K, pequeno selo que acabara de ser lançado por ele. Comprei alguns títulos, um dos quais até resenhei para o saudoso Jornal do Brasil. A editora não existe mais, o Delfin seguiu em frente com outros projetos, mas se tornou uma figura emblemática (alguns diriam até folclórica) da Flip, com seu sorriso franco e sempre antenado com tudo o que acontece na festa, além de um camarada divertido pacas. Acho que o Delfin, com a suprema liberdade com que se costura por entre as ruas de pedras, resume bem essa rede de afetos — mais que de apenas contatos — que se tece naturalmente por aqui.

De uns anos para cá, tenho me interessado menos pelos chamados grandes nomes do quadro oficial e mais pelas programações paralelas da Flip. Talvez porque privilegiam autores nacionais em vez de estrangeiros com muitas consoantes nos nomes. Mas também pode ser uma sintonia desregulada com o evento em si: posso ser equivocadamente ufanista e não estar acompanhando direito quem está em voga do mercado de fora, e que precisam ser sempre o foco do evento e justificar o internacional do nome, assim como não compreendo o sorvete da praça, que custa sete reais uma bola e quinze duas. Deve haver uma lógica que me escapa.

Daí a importância da grande margem. Nessa via paralela e acessível, prevejo o dia em que o Delfin, o nosso rei histriônico da Flip, vai assumir a frente do evento. Vejamos em 2014.

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Encontro com leitor

(crônica publicada no site Vida Breve.)

Por esses dias, aproveitei a lacuna entre empregos para visitar uma instituição que oferece reforço escolar para crianças, a fim de ler meus livros infantis e conversar com a garotada. Gosto muito de visitar esses locais, do contato direto com jovens e educadores, bem como ir a escolas públicas, onde me sinto mais à vontade do que em eventos literários de maior porte. Creio que isso se dê menos por um sentimento de filantropia do que por me identificar mais com plateias que possuem menos acesso a livros e outros bens culturais. Fui aluno da rede pública durante toda a vida e, há uns anos, quando visitei minha velha escola, me dei conta de que estava falando não só com aqueles meninos, mas também comigo mesmo, tímido e atento, curioso pela diferença de vinte anos que nos separava. No fundo, tive um certo alívio ao constatar que eu era apenas um menino, como todos aqueles outros meninos ali me olhando.

E foi assim novamente na semana passada com as dezenas de crianças que conheci na Comunidade César Maia. O nome do local não é muito feliz, mas há que se perdoar — o local. Trata-se de um conjunto construído na década de 1990 para receber desabrigados da Cidade de Deus, em virtude de uma enchente que devastou o bairro na época. Fica em Vargem Pequena, muito longe de onde circula o grande capital cultural da cidade, longe das modinhas de um subúrbio idealizado, longe até das comunidades contempladas pelas UPPs. A Comunidade César Maia ficou mais para trás que o então prefeito que a batizou: nem houve ali nenhuma manifestação nas últimas semanas. E por ser tão paralela, marginal e fora dos circuitos é que visitar aquelas crianças foi a coisa mais importante que fiz nos últimos tempos.

Tenho trabalhado há uns anos em programas e projetos ligados à formação de leitores. A despeito de estudos sobre a necessidade de se ampliar o número de pessoas que buscam o prazer do texto, em determinados círculos é comum o discurso segundo o qual o processo criativo constitui a etapa mais relevante da literatura, sendo que a leitura entra apenas como uma possível consequência. Há quem defenda até que leitores são desnecessários para essa cadeia, quase sempre porque o ego autoral ocupa todo o espaço. Acredito que não só é preciso formar leitores, mas que os autores devem sair cada vez mais dos seus claustros de genialidade e se movimentar. A internet é ótima para essa aproximação, mas nada se compara ao contato direto com quem nos lê. Geralmente aprendemos muito com outra perspectiva.

Daí a importância do encontro com aqueles leitores. Falei para dois grupos. No primeiro, li alguns livros e, em seguida, fui surpreendido com aquelas perguntas desconcertantes que só as crianças fazem, munidas de uma sinceridade ainda não podada pelo crescimento, que nos tiram da comodidade das nossas certezas. Enquanto entrava o segundo grupo, composto por crianças um pouco maiores, notei que as educadoras se esforçavam para que um menino mais arredio participasse. Como eu tivesse notado o jovem tentando se esgueirar do restante do grupo, segredaram-me que o Wellington (resguardemos o nome verdadeiro dele) tinha uma história de vida mais “complicada”. Segui com a sessão de leitura e conversa, até que ele apareceu novamente no fundo da sala e me fez uma pergunta. Logo depois, esse menino me disse que também queria ser escritor quando crescesse.

Ao fim da sessão, as turmas voltavam para as salas e continuei papeando com o Wellington. Esperto e divertido, perguntou se todo autor tem furo no queixo, de onde tirava as histórias, que livros gostava de ler na idade dele e outras coisas. Não sabia algumas respostas — a do queixo já tenho suspeita — e inventei na hora. Despedi-me de todos, com o desejo de que esse nosso encontro tenha contribuído para que ele possa encontrar meios para criar muitas histórias, inclusive escrever a própria trajetória. Não sei ao certo se minha visita na Comunidade César Maia serviu ou servirá para inspirar meninos como o Wellington, mas garanto que o encontro me ensinou muito, e por isso, com toda gratidão, esta crônica é para eles.

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