Category Archives: crônica

Escritor de contraturno

— Cidade?

— Rio de Janeiro.

— Estado?

— Idem.

— Profissão?

— Escritor.

— Que legal, senhor. Tipo escritor de novela?

— Feliz, ou infelizmente, não. Escritor de livro, essas coisas.

— Ah, sim. Mas no caso escritor é profissão mesmo?

— Bem, para poucos é, mas é um trabalho, mesmo pagando tão pouco. Mas quase nenhum escritor gosta de dizer que é profissional. Talvez nenhum seja.

— Entendi… É que nem músico? Meu marido toca em bar, mas de dia trabalha em hospital. Vive dizendo que um dia vai viver da música. Mas sei lá.

— Sei bem como é. Mas se ele deixa o emprego não vai ter cabeça para tocar porque fica sem o feijão com arroz, certo?

— Sim, isso mesmo. Ele fez isso uma vez. Disse “vou viver da minha arte” e desistiu da ideia quando mais ninguém da família emprestava dinheiro pra pagar as contas. E ficou tudo nas minhas costas. A gente brigou e quase foi cada um pro seu lado.

— Imagino. Mas todo mundo da família pelo menos foi lá ver o show dele? Pra dar uma força…

— Ah, pra quê? Gastar dinheiro pra ver parente cantando? Se ainda fosse famoso… Mas nem isso. O pessoal até diz que ele se acha melhor que os outros porque é artista.

— Bom, mas se os mais chegados não ajudam, imagina os desconhecidos.

— Ah, moço. Cada um com seus problemas. Eu, por exemplo, não tenho paciência pra ler. Já tentei mas não consigo prestar atenção. Muita coisa na cabeça, sabe como é?

— Sim. Realmente exige concentração demais.

— O senhor está debochando de mim?

— Não, não. Jamais. É que fiquei pensando no seu marido. A gente tem coisa em comum, porque também preciso trabalhar de dia e ler e escrever só de noite e quando arrumo tempo. Sou o que chamam escritor de contraturno.

— Como é isso? Que nem na escola?

— Exatamente. O oficial, com todas as matérias importantes e que vão servir para o futuro, é o que acontece no turno de aula. As coisas do contraturno são quase sempre consideradas supérfluo. É aí que a gente entra, só no paralelo.

— Ah, sim. Meu marido diz que às vezes fica meio pra baixo porque parece que canta pras paredes. Ninguém nem olha pra ele. E pensa seriamente em desistir e trabalhar até morrer lá no hospital mesmo. Mas daí aparece um ou outro que gosta muito da voz dele, aí se anima de novo, respira e volta a cantar. Aposto que com o senhor é assim também.

— Pois é. Exatamente isso… Bem, tudo preenchido. Agora vou subir para o quarto. Amanhã vou dar palestra no evento literário. Se der aparece lá com o seu marido.

— Ok, aqui a sua chave e senha do wifi. Se der a gente vai, mas não prometo nada, tá? Muita coisa, sabe como é…

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Assunto crônica

A greve geral do turno da tarde

 

O novo sempre vem.
Belchior

A leitora que me perdoe o tom mais sério da crônica desta semana. Minhas preferências temáticas para este hebdotexto são, geralmente, coisas menores da vida. Em vez de analisar as consequências políticas da uma explosão de bomba em algum lugar, prefiro comentar sobre um desencontro que causou uma situação engraçada. Em vez de deliberar sobre o supostamente fácil e violento Fla-Flu que se tornou a vida política brasileira, prefiro puxar o fio de um causo bizarro numa cidade pequena. Em vez de tricotar sobre as conquistas de minorias de toda ordem apontando o dedo para a hegemonia dominadora do homem branco europeu pererê parará, opto por analisar morfologicamente um trocadilho.

Faço isso por dois motivos simples. O primeiro é que essa tsunami sobre a seriedade já pode ser encontrada em qualquer lugar, especialmente nas redes sociais, onde todo mundo, em pouco tempo, se transformou em militante visceral especialista em tudo: pelo menos virtualmente. A segunda advém da própria estratégia da crônica, que costuma puxar para o comezinho. A propósito dessa técnica, lembro aqui do parágrafo da crônica “Um pé de milho”, do grande Rubem Braga, publicada na década de 1940:

“Os americanos, através do radar, entraram em contato com a Lua, o que não deixa de ser emocionante. Mas o fato mais importante da semana aconteceu com o meu pé de milho.”

É isso. No entanto, mesmo o mais distraído dos nefelibatas é tragado de volta ao rés-do-chão pela vida ordinária. Foi o caso desta semana. Um dos lentos e longos aprendizados que a vida tem me trazido é não deixar que a indignação em relação ao mundo (sabendo que mudá-lo de maneira radical é uma ilusão adolescente) se converta em amargura ou ódio. Porque essas frustrações são, pelo que tenho observado, um tipo de gordura trans no espírito de muita gente.

Assim como alguns colegas de ofício, lanço mão de uma técnica antiga e simples – e que talvez se relacione à própria perspectiva que adotamos para escrever uma crônica: dividimos o todo em pequenas partes, para em seguida resolver, calmamente, uma a uma. Ou seja, para matar um leão por dia tenta-se trocá-lo por meia dúzia de gatos pingados. Pingados como nós somos.

Dei toda essa volta para dizer que aderi à greve geral da semana passada, junto com meus colegas de setor, pois todos não se conformam com as reformas trabalhistas em pauta, muito menos da forma como estão sendo formuladas e apresentadas à sociedade. Para quem começou a trabalhar aos 15 anos com carteira assinada, fica difícil aceitar esse modelo, mesmo porque não se trata apenas de futuro, mas também de respeito ao passado: quem vai devolver os anos de juventude dedicados à labuta forçada?

Enquanto escrevo a crônica, a notícia é que apenas a minha área, cerca de 20 profissionais de Cultura numa empresa com centenas de pessoas, aderiu. Às nossas chefias, compostas por educadores conhecidos publicamente pela atuação junto ao pensamento tradicional de esquerda, coube repassar o recado superior: greve é direito e a decisão é de cada um, mas venham de Uber se necessário. No mesmo dia, proposição similar havia sido adotada pelo prefeito de São Paulo, o engomado Jorge Dória. Mas ele já havia advertido que cortaria o ponto dos grevistas. No nosso caso, ainda não sei.

A ocasião me fez lembrar de quando organizamos uma paralisação de funcionários do McDonald’s numa sexta-feira, por volta de 1992. Como fosse época de hiperinflação, era comum deixarem dinheiro rendendo no banco de um dia para o outro, o chamado overnight, de maneira que se o pagamento dos funcionários atrasasse por algum motivo renderia mais algum para o patrão. Éramos garotos, já com o filé do nosso tempo vendido barato para a produtividade em escala sanduicheira, e ter a merreca no fim de semana nos permitiria sair após o expediente para dançar. E ter isso retirado mais uma vez com argumentos tolos (“alguém viajou e se esqueceu de assinar o papel do pagamento de novo”) já não convencia ninguém. Ainda em frente a agência daquele banco Nacional que ficava próximo à lanchonete, meu turno decidiu não ir trabalhar naquele dia. Não fomos ler Marx, nem sabíamos o que era isso. Tomamos o rumo da videolocadora, alugamos o filme “Robocop 2” (para pagar na volta, claro) e fomos para a casa de um dos então subversivos assistir. Tempos depois apelidei o episódio de “A greve do MarxDonald’s”.

Chegando no sábado, soubemos que a sexta havia sido tumultuada, pois o pequeno grupo do turno da tarde fez falta durante ao alto movimento. Estranhamente, não sofremos retaliações e o salário nunca mais atrasou.

Essa paralisação aparentemente boba foi minha primeira consciência de força da coletividade e de entendimento do mundo externo tal como ele é.  E foi um acontecimento tão simbólico que é o único fato real que inseri no meu romance “O próximo da fila”, que trata dessas descobertas, com um grupo de jovens lidando com as idas e vindas entre o pessoal e o social.

Na sexta-feira, dia 28/04, o déjà vu foi inevitável, pois a sensação de fazer o correto era a mesma, e me orgulho de ainda fazer parte da meia dúzia de gatos pingados. Meus companheiros (pela etimologia, “os que comem o mesmo pão”) estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças, como já disse o Drummond no seu poema “Mãos dadas”.

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Nove pós-verdades e uma pré-mentira

A brincadeira desses últimos dias – ou últimas horas, ou últimos posts – é listar uma sequência de dez fatos, dos quais nove deles seriam verdadeiros e um não passaria de mentira deslavada. Tal como muitas das atividades criadas nas redes sociais, a maioria das listas não passa de grande alerta das pessoas requerendo atenção, sequiosos de que fatos corriqueiros das suas vidas adquiram mais relevância do que de fato têm.

Como poucas coisas da minha vida são dignas sequer de uma nota de rodapé, minha contribuição foi listar dez fatos relacionados ao meu periquito de estimação, o Fred. Entre as bobagens verídicas, como ele ter quase morrido porque o esqueci no sol durante um verão em que me distraí tomando banho de mangueira, a mentira era que ele sabia cantar o hino do Vasco: o Fred, assim como todos em casa, torce pelo Flamengo.

Não pude deixar de me lembrar da famosa afirmação do saudoso poeta Manoel de Barros: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”. Claro, nem todos os que aderiram ao jogo dos dez fatos são escritores. Mas olhando a sequência de fatos apresentada pelos meus amigos e contatos, relacionando à pequena mentira sobre o periquito, cabe a inevitável pergunta: quem garante?

Após análise minuciosa de várias listas nas redes sociais, além dos conceitos de pós-verdade estabelecidos nos últimos tempos, surgem na minha cuca outras questões que me fazem desconfiar dessa coisa toda. Aliás, a Universidade de Oxford elegeu o neologismo post-truth como palavra do ano de 2016. É claro que a pós-verdade não passa, em muitos casos, de um eufemismo para a boa e velha mentira de políticos, especialmente quando defrontados com evidências de que estão metidos em maracutaias. Ouvi no rádio por esses dias um marqueteiro explicando o fato de ter usado Caixa 2: “nossas contradições constroem nossas armadilhas, meu cérebro criou escudos etc”. Rapaz, quer mais pós-verdade que isso? O superego do sujeito deve ter tomado anabolizantes.

Logo neste mês de abril, que começa com o dia da mentira, para o qual fiz, há uns anos, uma quadrinha singela:

Dúvida que ninguém tira

Desde a minha tenra idade:

Se hoje é o dia da mentira

Os outros são da verdade?

Ao ler essas listas de nove verdades para uma mentira, concluo que, com a devida apuração dessas listas e cada um dizendo que de fato aquelas verdades não são tão maravilhosas como se pintam, a proporção talvez seja maior ainda, não digo meio a meio, mas uns 60/40. Ainda com a maioria sendo de verdades, pois minha crença no ser humano continua inabalável. Talvez tudo melhore um pouco quando, seja nas listas pessoais ou no dia-a-dia dos políticos, as pós-verdades sejam, de antemão, assumidas como pré-mentiras.

Por isso reconheço desde já: se o Fred não canta o hino do Vasco, tampouco entoa o do Flamengo.

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O menino criptografado

Durante duas semanas estive entre Paris, Bruxelas e Lisboa, entre compromissos de trabalho e outros literários. Durante o período, acumulei pequenas histórias, retive breves acontecimentos, guardei na cuca interessantes motes que me rendessem crônicas para as semanas que viriam. Porque a maior angústia do cronista semanal é se ver diante do prazo de entrega do texto e não ter encontrado ainda na vida ordinária nada que valesse a pena puxar como assunto.

Só que não, como diz a molecada. Nenhum fato ou notícia atiçou mais o imaginário das pessoas nesta semana do que o jovem acreano que desapareceu após deixar 14 livros escritos criptografados, temperado com uma sequência de acontecimentos mirabolantes. As teorias literárias pululam.

Enquanto escrevo, neste sábado chuvoso com clima de mistério, o caso ainda traz inquietações e não foi solucionado. Não sei se até a publicação haverá updates, mas o sumiço ainda levanta todo tipo de teoria. O garoto se chama Bruno Borges, estudante de psicologia de 22 anos, filho da psicóloga Denise Borges e do empresário Athos Borges. Tem um irmão gêmeo chamado Rodrigo e uma irmã, Gabriela.

Ora, só com o sobrenome Borges já nos colocamos numa instância labiríntica de fatos, ainda mais depois de olhar as fotos dos caracteres escritos nas paredes e chão do cômodo. Durante mais de um ano, o quarto permaneceu trancado, inacessível a quaisquer outros membros da família, o que nos faz imaginar que o próprio Bruno o limpava, e isso já o torna digno de admiração por conta do relaxamento tão comum na faixa etária.

Não quero entrar aqui nos memes surgidos pelo caso, inclusive aqueles que trollam o Acre, estado que já visitei há uns anos e que possuía casas de leitura interessantíssimas, tocadas pelo guru Francisco Gregório Filho. Mas uma delas diz que a Legião Urbana previu: “estátuas e cofres / e paredes pintadas / ninguém sabe o que aconteceu”.

Acredita-se que o jovem seja a reencarnação do filósofo italiano Giordano Bruno, que foi queimado pela Igreja em 1600 por acreditar que havia outros planetas no universo, e que o universo não gira em torno do nosso umbigo – essa ideia voltou com força segundo muitos ególatras publicam no Facebook. No quarto de Bruno, havia uma estátua do filósofo, feita por um artista chamado Jorge Rivasplata, de 83 anos. Jorge, que nem o Borges?

Uma pausa. Há que se concordar, de fato, que os nomes dos envolvidos parecem típicos dos best-sellers de Dan Brown. O nome do pai, Athos, é conhecido por ter sido o mais velho dentre os protagonistas de ‘Os três mosqueteiros”, de Alexandre Dumas (pai). Consta, aliás, que Dumas havia se inspirado numa pessoa que de fato existiu. A irmã, Gabriela, vem do nosso Jorge Amado. O irmão gêmeo Rodrigo (não quero levantar a hipótese simples de que o irmão é que desapareceu Bruno tomou o lugar dele) vem do Érico Veríssimo. Só o nome da mãe (Denise) não é uma personagem conhecida – mas deve ter sido para tentar disfarçar.

Uma nova teoria da internet sugere que as criptografias teriam se baseado no Manual do Escoteiro Mirim, publicação da Disney muito famosa na década de 1970. Esse livro, divertido e com muitas atividades sugeridas ao ar livre, marcou uma geração. Com a notícia é capaz de muitos se interessarem em apresentá-lo às novas gerações. E isso também pode ser positivo, fazendo com que a garotada deixe, pelo menos um pouco, os youtubers.

Enquanto muitos já associam o sumiço a abduções por extraterrestres, a polícia acredita que Bruno tenha apenas dado um tempo disso tudo. A verdade é que sabemos apenas desse volume de informações fantásticas em torno do caso. Mas sabe-se lá da solidão, da angústia, da ansiedade, enfim, da encheção de saco pela qual esse menino passa na vida e que o motivaram a isso tudo. Essas criptografias são únicas e cada um é que pode, do seu jeito, tentar decifrar.

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Paris sem spleen

Escrevo esta missiva hebdomadária de Paris, onde estou para uma sequência de eventos literários com umas dezenas de outros escritores. A maioria é oriunda do Brasil, mas há outros dos outros países lusófonos e até de outras nacionalidades, mas que falam e escrevem em português.

Essa Printemps Littéraire Brésilien, a Primavera Literária Brasileira, chegou de mansinho em 2014 como um evento da Sorbonne voltado para alunos de português da universidade, mas logo se tornou um acontecimento maior, expandindo o conceito para outros espaços culturais e eventos maiores como o Salão do Livro de Paris, para onde vou correndo assim que pôr o ponto final desta crônica.

Pode parecer estranho mais de 30 pessoas de afastarem do seu país para discutir a literatura local. Com tanto perrengue acontecendo no Brasil (os quais não vou listar aqui para não extrapolar os caracteres necessários pelo bom senso para uma crônica), que fazem esses bestas do outro lado do Atlântico? O que pode ser discutido de forma relevante em terras estrangeiras que não seria melhor debatido no próprio olho do furacão? Que negócio elitista é esse?

Essas perguntas nos trazem outras, que vão oscilando entre o geral e o particular, entre a história de cada um e a representatividade do grupo. Primeiramente, lembro-me de que o grupo de autores aqui selecionados representa segmentos importantes da literatura brasileira contemporânea. Sete deles, inclusive, foram descobertos pelo Prêmio Sesc de Literatura, concurso para inéditos que tenho a honra de coordenar, e que seleciona seus vencedores unicamente pelo critério da qualidade literária. E vieram, quase todos, por conta própria, uma vez que é um projeto colaborativo, sem patrocínio. Desse modo, não há celebridades aqui, não há agraciados com dinheiro público, leis de incentivo ou as mamatas que parecem nortear o comportamento brasileiro.

Portanto, trazemos a diversidade brasileira, que deve ser mostrada sim em todos os lugares possíveis. Mesmo em tempos bicudos como esses que vivemos, precisamos evidenciar que a voz de artistas da palavra continua se manifestando para tentar recriar o mundo.

E como representante de periferia carioca, de uma minoria que é maioria silenciada há gerações e gerações, não posso deixar de lembrar: resistimos e vamos abrindo caminho onde não era para ter caminho. Não sou ativista de redes sociais, mas soldado de campo, e enquanto puder levar nosso desejo de sublimação pela arte da palavra, eu vou.

Não há melancolia aqui, não rola spleen – sequer gosto de fumar, como essa gente aqui faz tanto –, e sim o entusiasmo ora falante ora mais sutil, como as crianças que vi lendo agora há pouco no metrô, nas pequenas revoluções silenciosas que aconteciam nas respectivas cucas.

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O papel da carne no X (de) tudo

Numa banca de jornal qualquer…

– Moço, me vê um x-tudo?

– Vai querer com que tipo de papel?

– Tem de quê?

– Um bom é o couchê, que tem uma textura boa. O mais popular é o papel jornal, que a barraca do caldo ali também usa na sopa de letrinhas e mantém a galera bem informada. Tem um reciclado, mas não recomendo porque é que nem carro usado: uma hora você descobre uma porcaria do antigo dono.

– Nuss, tô fora! Que mais?

– Chegou o pólen 90, que sai muito. Tá na quarta edição o sabor picanha.

– Uau, acho que vou querer esse.

– Calma que tem também uma novidade exclusiva aqui na região. Só comigo você encontra o aspen e o vergé. É coisa refinada. Na Zona Sul não se come outra coisa. Repara que em novela do Manoel Carlos tem sempre alguém segurando um deles nas cenas de rua.

– Poxa, mas é mais caro, e o destino é o mesmo. Faz o seguinte, me vê um de papelão mesmo, esse da promoção.

– Tá ok. Vai querer como?

– Não entendi.

– Comprei uma nova chapa digital, mas muita gente ainda prefere a qualidade da fritura offset.

– Tô com um pouco de pressa. Vai no digital mesmo. Quanto é?

– Esse sai a 6,90. Agradeço se tiver trocado.

– Opa, tenho essas moedas de salaminho aqui no bolso. Deixa eu contar que acho que dá certinho…

– Valeu, garoto! Toma aqui.

– Tem guardanapo?

– Sim, pode pegar ali no bloquinho de rosbife.

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Megafarofa de ideias para salvar o mundo

Posso estar enganado, mas me parece que todos os escritores e artistas em geral vivem sempre numa oscilação mental entre si e o mundo. Os não-artistas também, claro. Mas é que esses indivíduos portadores de habilidades estéticas costumam, propositadamente ou não, passar um pouco da fronteira, seja para colher o seu material de trabalho ou para mostrá-lo. Vão demais, para dentro ou para fora.

E ainda com um agravante: o artista tem a firme convicção de que vai mudar o mundo. Essa empreitada quixotesca cai por terra não quando ele se dá conta de que não tem força ou expressão para isso, e sim quando descobre que o mundo, o mundão mesmo, não existe de fato.

A leitora pode pensar que estou misturando um pretenso tratado de estética com uma noite mal dormida, talvez até sofrendo a influência de bebida ou remédios de tarja preta antes da escrita. Não tanto. Ansiolítico algum me daria essa certeza de que a realidade não passa de uma grande abstração criada para nos controlar ou mesmo para nos manter nos eixos, evitando uma piração geral diante da nossa incapacidade de absorver a grande verdade, seja lá qual ela for.

(Lembro de três colegas de trabalho que apelidei de rivotrio.)

O Camões disse bem nos decassílabos: todo o mundo é composto de mudanças / tomando sempre novas qualidades. Heráclito, o patrono das empresas de fretes, já havia dito isso bem antes: o mais importante na vida é a mudança. Essas citações já tão batidas que nem precisei de aspas me vieram à mente quando, semana passada, vi um monte de gente confusa sobre algo que até então parecia simples: comemorar o dia internacional das mulheres tornou-se uma gentileza ou uma ofensa? Não quero entrar nessa questão, mesmo porque essas polêmicas surgem e desaparecem mais rápido do que a crônica, pescadora do efêmero, consegue reter.

Por exemplo, enquanto escrevo estas linhas todos parecem falar de Karnal, mas sei que até eu entender do que se trata já terá passado e os trendtopics serão outros, podendo me relegar ao ridículo da notícia velha. Retomando uma metáfora da era da mídia impressa (quem se lembra dela?), os cronistas precisam ter a perspectiva do peixe de feira que era embrulhado em jornais dos dias anteriores. Os passarinhos, cujas gaiolas forradas com desatualizações servem apenas para que eles manifestem sua opinião sob a forma de uma titiquinha.

Esse sintoma e sentimento de anacronia aguda – ou anagudeza crônica – que a lentidão nos confere tem apenas um lado bom, que é não se deixar tomar pela fúria instantânea e virtual que parece assolar tanta gente. Creio que a culpa deve ser dos logaritmos das redes sociais, que impelem as pessoas a ler e comentar determinados assuntos propositadamente direcionados para disseminar a cólera do dia, que será trocada por outra rapidamente. Essa técnica não é novidade, apenas tomou uma escala maior e veloz.

Nesses dias estive em Paraty a trabalho e, conversando sobre isso, concluí que a locomotiva de palavras que ordenam os logaritmos deve se retroalimentar num sistema virtual programado para a manutenção de um suposto estado de guerrilha que mantém as pessoas interessadas e democraticamente expressivas. Expressão e democracia são termos que traduzem conquistas, que de fato são. Mas desconfio que há um tipo de matrix nos controlando, ou pelo menos tentando.

Depois de umas e outras (sempre elas), cheguei a uma possibilidade efetiva para uma revolução libertária no mundo – e daí talvez minha maior contribuição para a missão quixotesca lá do início: se todos os bilhões de pessoas escreverem trocadilhos ao mesmo tempo, o sistema entraria em pane que faria caírem as cortinas que escondem o Mágico de Oz.

Já se disse, creio que o Millôr (sempre ele): um ditador pode evitar uma fotografia, não uma caricatura. Ou seja, não valem os memes, esses saborosos pitacos de humor que também têm o fluxo controlado. Minha proposta é de uma postagem maciça feito uma grande farofa, poética, dadaísta, em que os duplos, triplos sentidos vão bagunçar os anúncios, provocar colisões de interesses, distanciar e aproximar indivíduos de maneira randômica, redirecionar postagens aos abismos do inusitado. Depois do cataclisma virtual haverá um risonho e novo despertar da humanidade.

Dei a ideia e, antes que ela desapareça, grito como se pintasse num quadro de gelo: só a megafarofa de ideias salvará o nosso mundo!

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Réquiem para os orelhões

Dependendo da idade, a leitora (e veja bem, não quero aqui apontar, de forma deselegante, para a sua faixa etária específica, mas sim evocar o tempo passado de cada para as lembranças boas e doces da vida) pode ter vivido uma época em que todos os aparelhos, em vez de ficarem concentrados num celular que cabe na palma da mão, estavam espalhados pela casa, pela rua e pelo mundo.

(Não quero aqui entrar no rol dos saudosistas casimirodeabreus, aqueles que olham para trás com uma lente ajustada para ocultar todos os perrengues de então para entoar o “ai que saudades que eu tenho / da aurora da minha vida / da minha infância querida / que os anos não trazem mais”. Bem, considerando que Casimiro morreu de tuberculose (a coqueluche da época) aos 21 anos, creio que o poeta não teve muito tempo para deixar a nuvem da memória encobrir parcialmente as experiências de moleque, de maneira que a adolescência e o início da vida adulta dele devem ter sido realmente sofridas.)

Voltando dessa digressão enrolesca, esse nariz de cera pinoquiano que só a crônica permite, diferente dos textos acadêmicos e da “alta ficção” (olha só o cronista querendo entrar novamente em outra viela e correr do assunto principal) digo à leitora que, há um tempo, venho sentindo pena dos orelhões.

Assim como boa parte dos brasileiros, nas modestas casas onde morei (ai que saudades não tenho) não tinha telefone, que era realmente um bem muito caro – dependendo do lugar, chegava ao preço de um automóvel. Até o início dos anos 2000 os telefones públicos eram a única forma de muita gente falar com o parente, o amigo, a paquera (nota para um termo que está caindo em desuso; hoje em dia falam crush, e o mais interessante e curioso é que ambos eram nomes de refrigerantes que desapareceram, perdendo o gás na pequena história dos encantamentos).

Ficaram para trás as conversas que todos eram obrigados a ouvir na fila, durante o tempo de incômodo a que todos deveriam se submeter. O nível de aborrecimento aumentava à medida que o ocupante, em vez de se despedir, se acomodava e punha mais fichas, demonstrando a total falta de pressa.

Minha mulher conta que, na adolescência, participou de uma pegadinha da extinta TV Manchete: um anão pedia ajuda para alcançar o telefone. Ele então fazia a ligação e supostamente começava a conversar sem pressa, enquanto ela o erguia com grande esforço. Eis: o orelhão é resquício de um tempo sem pressa. Porque à medida que o orelhão diminuiu de tamanho, o tempo é que se tornou um anão em todos nós.

Por hora, esses objetos de fibra acumulam poeira ou, nos grandes centros, servem de locais para anúncios de serviços sexuais dos mais variados. E me vem a curiosidade para saber se alguém liga direto do orelhão para responder o pequeno fôlder colado: “Olha, estou vendo aqui o seu anúncio e fiquei em dúvida numa foto…”

Provavelmente as próximas gerações vão olhar para esses objetos bizarros e estranhos como peças de arte, uma vez que, em não muito tempo, as empresas vão desistir deles e retirá-los de vez das ruas.

Ou então irão voltar como algo cult, da modinha hipster, grupo que, há pouco tempo, passava a levar máquinas de escrever para cafés, a fim de chamar a atenção para si como descolados. De repente até o orelhão volta como vinil, e especialistas vão dizer o quanto aquela acústica era perfeita e pura, diferente dos ruídos vulgares que chegam pelo celular.

E talvez, assim como acontece com tantas pessoas, só depois do abandono é que serão valorizados: agora sim, caiu a ficha.

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A aula de Sérgio sobre Raduan

Na época da faculdade, havia um programa chamado Escritor Visitante, em que um grande autor oferecia uma oficina literária para os alunos. Recém-chegado àquele universo acadêmico, tudo era novo, ainda mais porque ninguém da minha família, até então, tinha entrado para o chamado ensino superior. Era negodi rico; ao pobre só restava a possibilidade de ser militar caso quisesse ser “alguém na vida”, era o mantra que ouvi durante toda a infância e adolescência, com evidentes ecos das verdades oriundas da ditadura. Sair disso era ser metido, achar-se melhor que os outros: ficar com rei na barriga. E como adolescente gosta de transgredir, essa foi a escolha que contrariava a regra, de modo que cometi uma pequena contravenção para me livrar da aeronáutica e entrar para Letras na Uerj. Aliás, a universidade hoje ameaça virar um grande esqueleto de elefante, e temo que em breve terei o mesmo sentimento quando passo em frente a um Ciep, de ver apenas uma carcaça do que um dia foi algo majestoso e belo.

(Mas isso tudo foi antes de cotas, da ascensão dos mais pobres a bens e serviços, incluindo a universidade, e lembrar pode me colocar no rol dos saudosistas caquéticos. E a vida é breve e o nosso material “é o agora / que mal chegou e já evapora”, como já bem disse o… Mentira, acabei de inventar por preguiça de caçar citação.)

Dizia que nesse programa de escritores da faculdade, me vi fazendo aulas com um escritor de que nunca havia ouvido falar mas que alguns colegas já cultuavam, o grande Sérgio Sant’Anna. Como boa parte dos alunos de graduação saídos de um Ensino Médio (ainda Segundo Grau) deficitário, nossa bagagem de leitura era muito restrita. E vejo que isso não mudou muito, já que muitas redes escolares ainda mantém a ideia de que a literatura começou no Barroco e acabou no Tropicalismo.

Mesmo sem saber que tinha aulas com um dos maiores autores brasileiros, ouvia atento as dicas, seu modo de ler e escrever, aquela caligrafia dele com letras diminutas, aparentando a preocupação com que fosse compreendido – pensava que um escritor de verdade deveria ter letras de médico. E uma frase do grande Sérgio (cujo filho André é hoje um grande camarada) ficou guardada: “Lavoura arcaica, por exemplo, é um livro tecnicamente perfeito”.

Acompanhei o trabalho do Sérgio, que se tornou um dos meus autores preferidos. Resenhei livro dele para o finado JB, fiz um ensaio sobre o seu primeiro romance no mestrado, sempre com o orgulho de ter sido aluno. Em meio a isso, li duas vezes seguidas o Lavoura arcaica, além do volume de contos Menina a caminho, deixando para depois Um copo de cólera, que apenas folheei e ficou como uma daquelas lacunas pessoais.

Sérgio tinha razão. Cada palavra é colocada ali como algo explosivo, e o protagonista André um dos personagens mais marcantes da nossa literatura. Os diálogos, especialmente na parte da família à mesa, de um poder que nunca vi igual nas nossas letras. Confesso que a mística em torno da reclusão do autor não me influenciou em nada nas leituras. Assim como provavelmente aconteceu com o Salinger e o Dalton Trevisan, acho que a ideia de não fazer parte do mundo diretamente, olhá-lo com certo distanciamento é, sobretudo, um recurso estético, cujo resultado pode ser tanto uma escrita mais pungente ou um silêncio que diz muito.

Por isso é que fiquei surpreso quando Raduan resolveu aparecer nos últimos anos, primeiro na Balada Literária, depois para uma fala política. Mas confesso que me causou constrangimento ao vê-lo, semana passada, no meio de um bate-boca na cerimônia de entrega do Prêmio Camões. Não creio que a literatura esteja acima das questões mundanas relacionadas a dinheiro, jogadas sujas de governos e posições políticas de jornalistas, militantes ou quem quer que seja – incluindo a do próprio autor. Porque a literatura bebe da vida mesmo, também do que ela tem de sórdido e sujo. Mas me pareceu que, por mais que tenha parecido um evento contendo elementos que o tornariam digno de entrar para a história, por conta das posições de todos os envolvidos, já evaporou, como mais um escandalozinho efêmero de redes sociais. O vídeo que circula e já será esquecido até sexta não condiz com o sentimento de ler o Raduan.

Por isso é que, de todo modo, prefiro voltar ao livro. E talvez a terceira leitura do Lavoura arcaica me faça entender um pouco mais sobre isso tudo. Ou então complique mais.

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Em Paquetá com Dona Therezinha

Já se foram exatas três décadas desde que fui a Paquetá. A pequena ilha ao fundo da Baía de Guanabara oscila entre um rápido destino idílico para uns e um tremendo programa furado para outros. Como fui ainda bem garoto com meu pai, irmão e um primo que desde então não vi mais, minhas lembranças são compostas por charretes, pedalinhos, uma praia com água escura e uma bicicleta alugada, cujo guidão estava torto e me obrigava a virar para esquerda caso quisesse andar para frente, num simbolismo literalmente sinistro que me acompanhou por toda a vida.

Há uns anos, publiquei o primeiro livro infantil, quer era composto por poemas a partir de pinturas do Rio de Janeiro de antigamente. Uma delas, um óleo sobre tela de Giovanni Battista Castagneto, era de uma Paquetá de 1898, que gerou esses versinhos:

Na ilha de Paquetá,
Onde hoje se vai de barca,
Ficou registrada a marca
Do que então havia lá.
O local, quase deserto,
Com raras casas por perto,
Deixa um recado certo:
Convida a visitar.

Apesar do convite para a criançada, eu mesmo não voltei mais lá, mais por falta de tempo que de vontade. Mas eis que a avó da minha mulher se mudou para lá recentemente. Esperava há umas semanas a visita dos bisnetos, e aproveitei para ir também.

Tentei esquecer por hora um daqueles ensinamentos do Millôr Fernandes: rever é perder o encanto. E não perdeu. As charretes foram substituídas por aqueles carrinhos elétricos, e os pedalinhos, veículo que voltou à tona (opa!) com o episódio do Lula, continuam como uma das principais atrações naquelas praias de águas escuras.

Tive um dia tranquilo de turista abobado com a paisagem, o papo com pescadores e o fato de estar num bairro carioca onde não existe engarrafamento, visto que não existem carros lá. No entanto, o que mais me surpreendeu foi a minha anfitriã. Não sei como se chama a mãe da sogra nas nomenclaturas de parentes, mas a Dona Therezinha é uma figuraça.

Aos 80 anos, não parece ter mais de 60. Gosta de demonstrar as séries de exercícios que faz antes de dormir e ao acordar. Tentei imitar mas não cheguei à metade.

Já foi cantora de rádio, e fez questão de me mostrar a carteira da Ordem dos Músicos do Brasil, emitida em 1962. A foto mostra com olhar questionador, instigante e ousado, e pelos causos era realmente avançada para a época. Depois que o primeiro casamento acabou, foi namorada de pessoas como Darcy Ribeiro e Cauby Peixoto, que causou um tremendo alvoroço ao chegar à casa da família no Grajaú para pedi-la em namoro. Na época, ter uma relação estável com uma mulher separada e com duas filhas era algo polêmico.

Depois entrou para a política, filiada ao MDB, trabalhou com o então governador Negrão de Lima, viajou pelo mundo inteiro. Mas nunca deixou uma atividade: a umbanda. Desde 1951, Dona Therezinha organizava um centro em Padre Miguel, Zona Oeste da cidade. Foi lá que organizava festas beneficentes para a população pobre da região. E mesmo se aposentando da umbanda (sim, ela conseguiu essa proeza) no ano 2000, mantém o trabalho voluntário regularmente. Mal chegou a Paquetá e já tem turmas de tapeçaria em tecido, cuja produção ajuda os alunos a vender para que complementem renda.

Dona Therezinha não olha para o passado com choramingos saudosistas, mas como quem apenas guarda a alegria do vivido. Acha que já viveu o bastante, não precisa de mais nada – a não ser uma viagem que pretende fazer ao Canadá, dos poucos países que não conheceu. Afirma, rindo, ter um kit velório, com as roupas já escolhidas e orientações a todos: “Não quero ninguém chorando; mas podem bater palmas, porque eu fiz tudo o que queria”. Com toda aquela disposição, esse tal kit não deve ter usado tão cedo.

A energia e a sabedoria dessa senhora me contagiaram de tal forma que tomei coragem e aluguei bicicletas com os meus moleques. Apesar de me sentir enferrujado, consegui dar uma volta inteira da ilha com eles, parando uma uma vez para apostar corrida, a qual perdi por pouco. (O guidão não estava torto, mas eu é venho ficando.) E por isso vou desde já fazer os exercícios da Dona Therezinha, que é toda fitness de corpo, mente e espírito.

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