Réquiem para os orelhões

Dependendo da idade, a leitora (e veja bem, não quero aqui apontar, de forma deselegante, para a sua faixa etária específica, mas sim evocar o tempo passado de cada para as lembranças boas e doces da vida) pode ter vivido uma época em que todos os aparelhos, em vez de ficarem concentrados num celular que cabe na palma da mão, estavam espalhados pela casa, pela rua e pelo mundo.

(Não quero aqui entrar no rol dos saudosistas casimirodeabreus, aqueles que olham para trás com uma lente ajustada para ocultar todos os perrengues de então para entoar o “ai que saudades que eu tenho / da aurora da minha vida / da minha infância querida / que os anos não trazem mais”. Bem, considerando que Casimiro morreu de tuberculose (a coqueluche da época) aos 21 anos, creio que o poeta não teve muito tempo para deixar a nuvem da memória encobrir parcialmente as experiências de moleque, de maneira que a adolescência e o início da vida adulta dele devem ter sido realmente sofridas.)

Voltando dessa digressão enrolesca, esse nariz de cera pinoquiano que só a crônica permite, diferente dos textos acadêmicos e da “alta ficção” (olha só o cronista querendo entrar novamente em outra viela e correr do assunto principal) digo à leitora que, há um tempo, venho sentindo pena dos orelhões.

Assim como boa parte dos brasileiros, nas modestas casas onde morei (ai que saudades não tenho) não tinha telefone, que era realmente um bem muito caro – dependendo do lugar, chegava ao preço de um automóvel. Até o início dos anos 2000 os telefones públicos eram a única forma de muita gente falar com o parente, o amigo, a paquera (nota para um termo que está caindo em desuso; hoje em dia falam crush, e o mais interessante e curioso é que ambos eram nomes de refrigerantes que desapareceram, perdendo o gás na pequena história dos encantamentos).

Ficaram para trás as conversas que todos eram obrigados a ouvir na fila, durante o tempo de incômodo a que todos deveriam se submeter. O nível de aborrecimento aumentava à medida que o ocupante, em vez de se despedir, se acomodava e punha mais fichas, demonstrando a total falta de pressa.

Minha mulher conta que, na adolescência, participou de uma pegadinha da extinta TV Manchete: um anão pedia ajuda para alcançar o telefone. Ele então fazia a ligação e supostamente começava a conversar sem pressa, enquanto ela o erguia com grande esforço. Eis: o orelhão é resquício de um tempo sem pressa. Porque à medida que o orelhão diminuiu de tamanho, o tempo é que se tornou um anão em todos nós.

Por hora, esses objetos de fibra acumulam poeira ou, nos grandes centros, servem de locais para anúncios de serviços sexuais dos mais variados. E me vem a curiosidade para saber se alguém liga direto do orelhão para responder o pequeno fôlder colado: “Olha, estou vendo aqui o seu anúncio e fiquei em dúvida numa foto…”

Provavelmente as próximas gerações vão olhar para esses objetos bizarros e estranhos como peças de arte, uma vez que, em não muito tempo, as empresas vão desistir deles e retirá-los de vez das ruas.

Ou então irão voltar como algo cult, da modinha hipster, grupo que, há pouco tempo, passava a levar máquinas de escrever para cafés, a fim de chamar a atenção para si como descolados. De repente até o orelhão volta como vinil, e especialistas vão dizer o quanto aquela acústica era perfeita e pura, diferente dos ruídos vulgares que chegam pelo celular.

E talvez, assim como acontece com tantas pessoas, só depois do abandono é que serão valorizados: agora sim, caiu a ficha.

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Assunto crônica

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