Colchas de retalhos

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(crônica publicada no site Vida Breve)

 

Para a Bianca e a D. Ana

A leitora que para suas atividades para ler uma crônica num site já é digna de aplauso. Pelo menos do meu. E desde já agradeço, pois esta é para você mesma.

Escrevo esta croniqueta no dia internacional da mulher. Dentre as muitas versões para a origem dessa data comemorativa, a mais conhecida é aquela atribuída ao incêndio numa fábrica de tecidos nos Estados Unidos, no qual quase uma centena e meia de costureiras morreram. Outra versão associa a data à greve das operárias da indústria têxtil russa, e tamanha foi a intensidade do movimento que o resultado foi a Revolução de 1917.

Das duas versões, um ponto me chama a atenção: a mulher que costura.

No filme Colcha de retalhos (de 1995, dirigido por Jocelyn Moorhouse), a personagem vivida por Wynona Ryder vai morar na casa da avó enquanto termina sua tese, dias antes de se casar. As amigas da avó se reúnem para costurar uma colcha de retalhos para dar de presente de casamento. Enquanto as idosas constroem a grande manta, cada uma conta a própria história. O final tem uma cena epifânica muito interessante, mas não vou contar para não ser acusado de soltar spoiler, caso a leitora ainda não tenha assistido a esse filme.

As colchas de retalhos são formadas por um conjunto de pequenos elementos que, sozinhos, não devem ter muita força, mas que unidos formam uma unidade imensa. Toda colcha de retalhos é uma revolução, e vice-versa.

A costura é um símbolo muito forte em muitas tradições ocidentais e orientais. Penélope, mulher do herói Ulisses, aguardava o retorno do marido da guerra de Troia. Ela apenas se casaria novamente quando terminasse de tecer um sudário, e toda noite desfazia tudo o que havia costurado durante o dia, num fio e desfio que durou vinte anos, quando então o marido, por fim, retornou.

Quem não conhece Sherazade, mito persa da mulher condenada à morte e que sobreviveu pela capacidade de cerzir histórias? O Rei Shariar, traído, decidiu se casar todas as noites com uma mulher e no dia seguinte pela manhã iria matá-la, para não ser chifrado novamente.  Mas a astuta Sherazade encantou o rei com narrativas durante mil e uma noites, e ao fim não só ela estava livre da execução, mas também havia livrado o rei de sua amargura e vingança, e ambos se casaram e viveram enquanto dura a eternidade das lendas.

Plural e amplo, o manto das histórias de Sherazade salvou todo o reino.

A minha bisavó utilizava uma daquelas máquinas de costura antigas, com um pedal de ferro pesado. Parecia uma locomotiva que não saía do lugar, enquanto costurava as colchas de retalho que usava em casa e dava de presente. Eram muito confortáveis, resistentes e seguras para tirar um cochilo em cima, uma extensão da minha bisavó.

Essa lembrança, como todas as boas viagens da memória, age como um bumerangue e volta para os nossos dias. Minhas últimas três chefias de trabalho, incluindo a atual, são mulheres – e nem quero falar da presidente. Fui criado apenas pela minha mãe, que aniversariou ontem, e lá estavam minha namorada, primas, tias, sobrinhas, cada uma delas mulher ora de Atenas, ora de Tróia, seja esperando ou defendendo seu pequeno reinado do dia a dia.

E então me dou conta de que eu mesmo sou uma colcha de retalhos, tecido construído pouco a pouco por mãos tão distintas quanto habilidosas.

Que este pequeno texto, alinhavado aqui por um costureiro incerto, sirva para cobrir por uns minutos os olhos da leitora, como quem se deita brevemente procurando a suavidade de um cochilo.

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Assunto crônica

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