Oito finais para oito livros não escritos

(crônica publicada no site Vida Breve.)

Ilustração: Rafa Camargo

Uma das grandes vantagens da literatura é que, assim como Deus e a nota de cem reais, você até pensa que existe, mas não vê. E se ela não existe, só lhe resta ser inventada — em psicanálise sintática, por exemplo, existe um tal sujeito inexistente que é o terror da garotada na sexta série. Nietzsche, um dos grandes humoristas que já pisaram por essas terras (“Eu só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar”), nos legou os seus famosos prefácios de cinco livros nunca escritos. E se encontrássemos, num arquivo empoeirado e esquecido, os finais de livros que foram rejeitados pelos respectivos autores, seja por preguiça de escrever tudo que veio antes, seja porque não passaram de um exercício barato de estilo, feito flexões e polichinelos do vernáculo?

 

ETERNO DESCALABRO, de Lúcio Guedes Andrada (1838-1887)

“Rosélia despediu-se, trêmula e revigorada. Após fechar a porta e virar a chave, ouviu a sibila que entoava docemente o canto da ausência recém-nascida. E então, na solidão temporã dos trinta e sete anos, teve o amor descortinado por uma dança irreversível, de arrebatamento, sob cujas meras sombras irrompia um clarão de maio. Sabia que era tarde, olhou o dorso das mãos, com um sorriso tímido e resignado. O silêncio permitiu o som longínquo do portão que se fechava para sempre. Foi então que Rosélia abriu a janela, olhou para baixo e se tornou parte daquela tarde invisível.”

NEM CHUS NEM BUS, de Célia Gomes Correas (1969- )

“Sifu, mifu, nosfu. A situação que deixaria Selminha roxa de constrangimento não resultou num mal em definitivo, como planejáramos. Pelo contrário, resgatou algo do seu caráter perante a multidão, atraindo os caça-colunáveis feito pivete com detergente em para-brisas no sinal. Sem saber para onde ir, o que fazer, o que despir (nossas expectativas minguaram), restou-nos dar uma risada coletiva e cair na diversão com os seguranças da festa. Todos genéricos, me garantiram. Eu quero é mais.”

CONTOS PROLONGADOS DA MARQUESA SHEILA ZADE, de Duínio Sales Ferreira (1971- )

“E foi por aquele fio que Dé cantou à moda de Lionel Richie ‘All nylon!’ por toda a noite. Tinha a alma de sonhos povoada, e a alma de sonhos povoada tinham também as moças que se aproximavam lânguidas e esmerosas, inebriadas, hipnotizadas, antissereias que só. No que uma pulsão morna lhes sussurrava no instigo: ‘ou dá ou dé’, coisa assim dessa marca. O mancebo se esticava, labirintoso de perdição, enquanto lá fora a melodia subia ao ralo do céu, etérea, tendo a noite oferecido um ensaio de lua absolutamente destituído de quaquaragens.”

NOVES FORA: NADA, de Zulpério Gama (1952 – )

“Sem perspectiva, restou a Tirésias caminhar às cegas por uma Outro Preto irreconhecível. Tateava descendo a Rua do Meio, cheirava o escuro de si e arquitetava secretamente onde não pisar. Distraiu-se com um Beto Guedes inédito que alguém cantarolava na distância, e rolou, decerto, no ritmo absorto dos paralelepípedos, até ser amparado por estudantes profissionais, cujo líder lhe apresentou o valor da República. ‘Noventa contos por mês’, ouviu de um, ‘mas só tem um banheiro’. O malogro lhe assaltara de insurgência: ‘que país é este?’, perguntou para si mesmo com um soluço.”

FARDA MAS NÃO TALHA, de Júlia Mendes Quirino (1947- )

“Não falei, bebé? Depois disso tudo, você me olha assim, grandão por fora, fraquelo por dentro. Milico, pede penico! Marcha, papel, cabeça de soldado. Quiedê meu país, hein? Levaram casidiquê? Fala, reco. Se vamos começar te arrancando as unhas, dando choque nos culhões, ou impalando com o cabo da vassoura? Sem peta, bebé, que não sou de escangalhar supresas. Salve o lindo peidão da esperança… canta comigo! Engrossa essa voz, seu biltre, mequetrefe, saporé, falpórrias, sagodes, safardana, zagorro, mucufa. Ordinário, marche! Para trás, para trás!”

O CANTO DO MELRO ALBINO, de Francisco de Aguirre (1903-1984)

“Sobre as nossas próprias camadas de dubiedade insurgiram novos cantos, prantos e quetais, de tal modo cimentados pela vida rupestre que o tédio medrou em definitivo. A lembrança de Maria Cecília já era uma sombra distante naqueles tempos ralos, por isso retornei pela última vez ao pequeno monte onde tudo começou. Deitei sobre a árvore: a mesma que, na infância, jurávamos possuir na sua copa um ninho de melros albinos, modificados desde o ovo por aquele arremedo de Ku Klux Kan que nos assustava. Nunca mais fui o mesmo depois daquele episódio, tendo permanecido num tipo moderado de equilíbrio cromático neste meu coração acinzentado pelas horas. A vida é na espera.”

MULHER TÃO QUASE ATLÂNTICA , de Talmo Régis de Farias (1948- )

“O céu traduzido num punhado de tristeza. E por isso mesmo infernal — éramos ainda os doze garotos que se remexiam nos porões de uma adolescência em busca de salvação. Hein? Sim, maior, bem mais cerceadora que as escuridões de uma ditadura abstrata, um sistema, uma coisa ampla e inefável que V. S.ª ainda ousa chamar de sociedade, o mundo, o coletivo, o outro. Só vejo você, cara senhora, só víamos você, e assim nos constituíamos: por isso roubamos as suas divícias e fugimos para sempre, antes que você pudesse nos asfixiar docemente com o seu amor vampiro.”

X-TUDO, de Zero Bill (Enilson Alves Barbosa, 1982- )

“eoeoeoeo samanta chupou bala de menta e se sentiu demente sem mente nem semente e achou que era hora de ir pra casa porque o anselmo seu cavaleiro sem elmo disse vaza e ela então foi mas no meio do caminho tinha uma pedra para pedro paramo e ela chutou a pedra eoeoeo é pau é pedra é foice é martelo marcelo marmelo e ela se sentiu um chicken mc nuggets que sonhava ser big mac mas era isso mesmo só um pedaço de galinha cantando tô ficando empanadinha tô ficando empanadinha eoeoeo anselmo tinha outras mas sei lá ela também tava feito bolinha de pinball batendo aqui e ali e sabia que entre um pino e outro ia acabar mesmo no buraco e nem adiantava chorar com a tatiana porque ela também devia estar andando com o anselmo que no outro dia ela mudou as letras no caderno e escreveu molensa malenso samelno e riu porque esses nomes não existem mas ele existia de verdade eoeoeoeo e a samanta atravessou a rua sem olhar pros lados que se foda se um carro me pegar mas nada e depois chorou dizendo que nem pra acidente ela servia”

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